O celular desperta às 7:00 da manhã. Olho para o teto e penso: “O que tens preparado para o dia de hoje?”. A resposta é imediata: “Nada, visto que a vida é imprevisível e não um roteiro de cinema”.

Levanto e me dirijo à cozinha. Tudo está tranquilo, e tenho o vento como companhia. Me sento para o desjejum, mas parece que a comida não tem gosto. O café parece doce e amargo ao mesmo tempo, assim como o meu humor.

Então, me lembro que é porque você não está aqui nesta manhã. O medo do abandono corrói meu corpo, como se eu não comesse há dias.

Tudo está tranquilo e... vazio. A sensação é de tocar no vento e alcançar o vazio. Do vazio, vem o impulso que convida à compulsão; devoro vários chocolates em menos de cinco minutos e fico com uma baita dor de cabeça. Caio no vazio de novo.

Caminho para o closet e penso: “Que identidade vou vestir hoje?”. Minhas identidades são tantas que eu já nem tenho certeza de quem eu sou. Já fui roqueira, motoqueira, religiosa, pagodeira, surfista; a lista é imensa e ocuparia 90% deste artigo.

No momento, sou escritora, tal como meu marido. Assim como a água, tomo a forma de onde eu estiver. E acho que esta é a chave para agradar todo mundo: construir diferentes identidades, agradando a todos, sendo querida e jamais abandonada.

Ledo engano! Vazio de novo!

Já em meu home office, me deparo com o cursor piscando no branco da tela do computador. Encaro a face do Word e questiono se o que eu faço tem a cor do vazio, ou se alguém lê o que escrevo. Tenho uma relação de valorização e desvalorização em tudo o que faço, oscilando em comportamentos de 8 ou 80 em questão de horas.

Tudo isso é muito crônico. São sentimentos crônicos de vazio. Um dos sintomas do Transtorno de Personalidade Borderline (TPB). No entanto, o relato acima retrata outros sintomas deste transtorno fronteiriço, tais como: medo do abandono, perturbação da autoimagem, oscilações abruptas de humor, relacionamentos intensos e/ou instáveis, comportamentos compulsivos, impulsividade e pensamentos paranoicos temporários.

Mas o calcanhar de Aquiles do TPB é, sem dúvida, o sentimento crônico de vazio, e é sobre isso que se trata este ensaio.

De acordo com um artigo publicado pela Universidade de Wollongong na Austrália, por meio do Instituto de Saúde e Pesquisa Médica de Illawarra, pessoas com o Transtorno de Personalidade Borderline têm experimentado o sentimento crônico de vazio como um sentimento de desconexão consigo mesmo e com os outros, e uma sensação de dormência e nada. É como estar fazendo algo no automático, como dirigir, e de repente se perguntar para onde está indo. Ou como estar em um churrasco cheio de gente, e se enxergar como uma estátua de cera: inerte, imóvel, “interagindo” através de um corpo com uma alma vazia. Mas tudo bem, se todos falam de churrasco, você fala também. O lema aqui é agradar (para não ser abandonado), lembra?

Para se ter uma ideia, um participante do estudo relatou que seus sentimentos de vazio estavam ligados a um senso difuso de identidade, e relacionou isso a se sentir como um camaleão que muda de cor de acordo com a situação.

É justamente por causa da desconexão consigo mesmo e com os outros que indivíduos com este transtorno se moldam a tantas identidades diferentes. Assim, em meio a tantos personagens, fica difícil eleger um só. A personagem dura enquanto durar o apego.

Sensação de falta de propósito e insatisfação também foram associadas ao vazio. Afinal de contas, essa é a pergunta de um milhão de dólares: “Qual é o meu propósito na vida?”. O problema é que a Personalidade Borderline se pergunta acerca disso o tempo todo, em todo o tempo. Sem saber o que fazer, vem a insatisfação crônica, e claro, o vazio nosso de cada dia.

O propósito da vida vem do sentido que damos a ela. E eu ainda não encontrei o meu. Onde está a parte que falta em mim? Procuro a parte que falta em mim!

A verdade é que não existe parte nenhuma, porque somos seres inteiros e faltantes. Assim, sempre iremos em busca do que nos falta. O problema é que no ser fronteiriço, a parte que falta tenta ser preenchida com compulsões como comida, sexo, drogas, trabalho, compras, etc. O prazer é tão imediato que te faz cair no vazio novamente.

O artigo ainda aponta que a incapacidade de compreender e tolerar experiências internas às vezes pode levar os indivíduos a inibir qualquer experiência emocional, levando-os a um estado de sentimento de vazio interior.

As experiências no TPB são tão intensas que muitas vezes é melhor escolher não as sentir, pois caso as sinta, pode correr o risco de ser chamado de dramático, histérico, teatral, sensível demais, etc. Sob este viés, você acaba se acostumando com uma vida sem sentir. Uma vida sem sentido.

O vazio é tão angustiante que surgem os comportamentos desadaptativos (no intento de aplacar a dor), como impulsividade, comportamentos autolesivos e ideação suicida. Os comprimidos então surgem para estabilizar o humor abatido, mas não para equilibrar os nossos pensamentos (que são cheios de vazio).

Outros participantes da pesquisa observaram que o vazio crônico geralmente surgia quando eles estavam experimentando sofrimento interpessoal – como comparar-se com os outros ou sentir que ninguém se importava com eles, ou disfunção interpessoal – incluindo conflito nos relacionamentos. É como crescer em meio a uma infância em que você só é bom o suficiente quando tira notas altas, mas negligente o bastante quando o vermelho enfeita o seu boletim. Quando isso acontece, você é comparado ao melhor aluno da turma, que é melhor do que você. Ou o esporro inclui ameaças de um futuro incerto ou falido, caso você não estude direito. Os conflitos do passado assombram o presente e travam o seu futuro. Você passa a se comparar com todo mundo que cruza o seu caminho e crê que “a grama do vizinho sempre é mais verde”. Surge então um ciclo infindável de cópia de identidades que não tem fim. É como correr atrás do vento.

Mas a sensação de vazio pode ser tão entorpecedora e constante na vida que a pessoa com Transtorno fronteiriço não sabe mais o que é viver sem ele, relata a pesquisa. Os participantes discutiram a natureza do vazio como sendo crônico e difícil de aliviar. Um participante notou que não sabia mais o que era não se sentir mais vazio, e outros relataram a sensação de estar preso e nada mudar. Isso me faz pensar na analogia do sapo dentro da panela com água fria. À medida que a água da panela vai esquentando, o sapo fica dentro dela, confortável e feliz, sem perceber que está morrendo. O vazio é a zona de conforto do paciente Borderline de tanto fazer parte da vida dele. A tal ponto que, se o vazio não estiver mais dentro dele, ele se sente vazio.

Mas nem só de angústia vive o vazio. Ele também pode servir como estratégia de tolerância à dor e ao mal-estar. Segundo alguns participantes do estudo, eles preferem se sentir vazios por dentro em vez de sentir uma emoção intensa e fora de controle, visto que a emoção no quadro borderline surge rápido demais (como em uma montanha-russa) e demora um tempo para se estabilizar novamente.

Mas, a esta altura do artigo, você deve estar se perguntando: o que eu faço com o meu vazio? Tem como eliminá-lo da minha vida? A resposta é: depende.

O primeiro passo é procurar ajuda psicoterápica, a fim de buscar se conhecer melhor e aprender a lidar com os revezes da vida ao invés de se acostumar com eles. O estudo ainda ressalta que é possível que a redução do distúrbio de identidade e a melhoria do funcionamento vocacional e relacional possam reduzir a intensidade do vazio crônico.

Esta que vos fala lida com o vazio do dia a dia escrevendo sobre ele. Projetar os sentimentos no papel é a melhor forma de lidar com eles. É terapêutico, refrigera a alma e te conecta com tudo o que está ao seu redor.

Afinal de contas, escrever é dar vida ao que está morto. E a toda forma de vazio.