Que ano para o cinema este 2023! Quando achava que Oppenheimer tinha sido o clímax do ano, surge nas telas “Killers of the Flower Moon” (“Assassinos da Lua das Flores”), a mais recente obra-prima desse génio do cinema chamado Martin Scorsese.

Em pouco mais de 100 anos de existência o cinema evoluiu de maneira exponencial em termos de tecnologia e linguagem. O cinema tornou-se a forma de expressão que marcou o século XX, da diversão das massas aos filmes de culto. É claro que uma evolução quantitativa não se traduz necessariamente em evolução qualitativa. Temos hoje acesso a uma infinidade de filmes, mas são poucos aqueles que nos trazem algo novo. São tantas sequelas, prequelas, franquias, “remakes”, que nos fazem questionar onde está a originalidade dessa arte, ou mesmo o que é cinema e o que é entretenimento, seus pontos coincidentes e divergentes.

Não é à toa que Martin Scorsese recentemente declarou que os filmes de super-heróis, por exemplo, não podem ser considerados como cinema. Não o cinema que por definição é a expressão artística que melhor simula a realidade, e que conseguiu, ao longo de sua breve história, questionar o mundo, a sociedade, expor conflitos, mergulhar na psique, criar mundos imaginários, viajar no tempo e no espaço, ir muito além do mero entretenimento de sábado à tarde.

Se há um homem na face da terra que respire cinema, este é Martin Scorsese, um diretor, escritor, autor e sobretudo um cinéfilo. Alguém que conhece a fundo a história dessa arte tão jovem e tão madura. Martin sabe tudo e conhece todos os filmes, é uma verdadeira enciclopédia viva do cinema. Em seus filmes percebemos, mesmo que intuitivamente, suas influências. Alguns diretores têm obras nitidamente influenciadas pela literatura, pela pintura ou pela música, mas os filmes de Scorsese relacionam-se com o próprio cinema. Para quem aprecia o cinema, seus filmes são um prazer de assistir. Scorsese transborda suas histórias com imagens icônicas, com uma linguagem própria, com um jeito de contá-las envolvente, e até faz-nos esquecer do tempo real em detrimento do tempo cinematográfico. Mesmo em filmes que passam das 3 horas de duração, como “Assassinos da lua das flores”. E posso dizer valem cada minuto!

Mas por que este pode ser considerado uma obra-prima?

A história

O filme mergulha em uma história real desconhecida, se não pelos americanos, mas certamente para o grande público internacional. Ele nos conta como os nativo-americanos da nação Osage tornaram-se o povo mais rico do mundo com a descoberta de petróleo em suas terras, no início do século XX, e como isso despertou a ganância e amplificou o preconceito racial do chamado “mundo civilizado”. O que aconteceu a seguir? Os Osage começaram a morrer misteriosamente, ou nem tanto, num dos episódios mais escuros da formação dos Estados Unidos. Não se trata apenas de uma clássica história de injustiça e luta do bem contra o mal, mas um mergulho a fundo na natureza humana cruel e na sobreposição de culturas, com a aniquilação de uma por ganância e riqueza.

Essa é a história recorrente das civilizações, de como os mais “desenvolvidos” conquistam e destroem os povos nativos, sua cultura, de forma impiedosa. Mas lembrem-se que estamos falando de uma história que ocorreu há pouco menos de 100 anos, no século XX, nos Estados Unidos, já naquele período a nação mais rica da Terra.

A história é baseada em um livro, de mesmo título, do jornalista americano David Grann que investigou por dez anos a história por trás das mortes dos membros da nação Osage. Na época, as mortes só conseguiram ser investigadas por muita pressão política dos Osage remanescentes. Esse caso resultou na criação de uma agência de investigação federal, que viria a ser o FBI.

Isso por si já renderia um intrigante filme documentário, mas aí entra o talento do realizador. Martin Scorsese consegue extrair uma história pessoal de amor, drama, cobiça, intrigas e luta pelo poder como fio condutor para nos apresentar toda a injustiça cometida contra uma etnia. São diversas camadas de temas e histórias umas sobre as outras, umas muito particulares, outras de uma escala gigante. A história do relacionamento e casamento de um homem branco com uma indígena deixa-nos o tempo inteiro a questionar se existe amor, respeito, e até que ponto podemos enxergar o bem dentro do mal e fechar os olhos para comportamentos repulsivos do protagonista, e de toda uma cidade.

Os nativo-americanos são puros e ingênuos, encarnam o mito do bom selvagem. Mas quem é o selvagem aqui? Quem forma os selvagens, se não a civilização branca que avançou sobre os povos nativos tirando-lhes tudo, inclusive a vida. A riqueza lhes caiu por acaso, com o petróleo jorrando em suas terras, mas também foi a sua ruína. O filme questiona numa camada exterior, mas com profundidade e sensibilidade o que é a civilização, e como esse “mundo civilizado” esconde uma cumplicidade de todos por ambição, onde a vida humana pouco importa.

O filme discute o mito de superioridade e inferioridade racial e cultural, sem ser panfletário. É um filme de época, mas super atual, que não cai na armadilha de colocar-se “nós contra eles”, “indígenas contra homem branco”. O trio em torno do qual a história é construída tem numa ponta a personagem Mollie, interpretada pela Lily Gladstone, uma indígena de alma essencialmente boa e pura, na outra o personagem Bob Hale, interpretado pelo Robert De Niro, o magnata inescrupuloso, mal por natureza, mas que tem suas razões. Entre os dois, o personagem Ernest, vivido pelo Leonardo Di Caprio, é um pêndulo que durante toda a história vive um conflito interior entre a sua ambição e seu amor. É um homem atormentado pelas decisões, todas erradas, que toma na vida, e que procura uma redenção através do amor que sente pela sua esposa.

As atuações

Os três atores principais dão um show de interpretação nessas três horas e vinte e seis minutos de filme. Eles têm uma química espetacular. O De Niro, amigo e parceiro de décadas do Scorsese, encarna um personagem real carregado de maldade. Ele trabalha com maestria numa fronteira entre ambição e ódio. O Bob Hale, seu personagem, é um homem de negócios sem escrúpulos. Seu poder é ameaçado pela imensa fortuna dos nativos Osage, e ele luta com tudo para mantê-lo, até mesmo casando seus parentes com indígenas para tomar-lhes suas terras e seu petróleo. Quando suas influências políticas não dão conta, ele apela para outros meios, sem remorsos. Ele não tem ódio no coração. São apenas negócios.

A cobiçada nativa Mollie, sentada literalmente num poço de petróleo, é interpretada pela atriz Lily Gladstone, também de ascendência indígena, com uma sutileza encantadora. Scorsese foi muito feliz na escolha da Lily, que com muita sensibilidade representa o elo da cultura Osage e sua apresentação para o espectador. O desempenho da Mollie é crucial para entrarmos na cultura Osage com total credibilidade. A opção artística por diálogos na língua nativa é perfeita, mesmo sem tradução. A expressão corporal, a calma e contenção gestual da Lily transmite a serenidade de um povo que sofre sem voz com a injustiça da sociedade civilizada.

Leonardo Di Caprio é monstruoso no papel do Ernest Burkhart, o marido da Mollie que se casa por interesse, incentivado pelo seu tido Bob Hale. Mas por trás da ambição existe o amor. Ernst ama Mollie, mas é fraco, ambicioso e não muito provido de inteligência. Um prato cheio para ser manipulado pelo tio. O conflito desse personagem é muito bem escrito e interpretado. Di Caprio consegue nos transmitir um Ernest dividido mentalmente, com reflexos na sua aparência física. Seu rosto é travado, sua boca caída, sua voz alterada. Ele é mau e doce ao mesmo tempo. Isso é trabalho de um ator excepcional nas mãos de um diretor de extrema sensibilidade.

Chegamos ao terceiro motivo pelo qual posso classificar “Assassinos da Lua das Flores” como uma obra-prima: um diretor.

O diretor

Martin Scorsese tem uma carreira de mais de 40 anos dedicados à criação cinematográfica como diretor, escritor, produtor, documentarista. E desde sempre com obras intrigantes e importantes. Na década de 70, “Taxi Driver” (“Motorista de Taxi”) com o mesmo De Niro foi uma revolução no cinema chamado realista e no drama psicológico, influenciando cineastas e inspirando filmes até hoje. Nos anos 80, Scorsese criou o genial “Raging Bull” (“Touro Indomável”), também com Robert De Niro. Quem não se recorda de “The Last Temptation of Christ” (“A Última tentação de Cristo”), seu filme mais polêmico. Nos anos 90 “Goodfellas” (“Os Bons Companheiros”) e “Casino”, ambos adivinhem com quem... De Niro. No século XXI, “The Departed” (“Os Infiltrados”), “The Aviator” (“O Aviador”) e “The Wolf of Wall Street” (“O Lobo de Wall Street”), filmes grandiosos e superpremiados. Estes todos já com seu jovem ator predileto Leonardo Di Caprio.

Agora Scorsese reúne os dois monstros sagrados, seus prediletos De Niro e Di Caprio num filme trabalhado por anos. Ele reescreveu a história do livro original, cujo foco estava na investigação dos crimes e na criação do FBI. Brilhantemente, Scorsese pinçou a história do relacionamento entre o homem branco e a nativa como fio condutor, dando aos protagonistas, especialmente o personagem do Di Caprio a oportunidade de expor a condição humana submetida à pressão do desejo e da ambição.

Como diretor, Martin Scorsese consegue criar com um realismo impressionante o meio oeste americano dos anos 20, do século XX. Ele joga com todos os elementos da criação cinematográfica para nos transportar para aquela época e imergirmos na cultura nativo americana, em contraponto ao crescimento das cidades, ambientes urbanos fétidos e sujos, que nascem da degradação da busca pela riqueza da América. “Assassinos da Lua das Flores” poderia ser descrito como um “western” de gênero, sem mocinhos e xerifes, sem saloons, um western tardio onde automóveis já tomam o lugar dos cavalos, onde o mundo já é movido a petróleo. Os personagens secundários, que dão sustentação à história são construídos e interpretados magistralmente. Suas histórias não são paralelas, mas convergentes ao foco da narrativa. Não tem nenhuma ponta solta, nenhum personagem desnecessário. Todos são importantes para a narrativa e acentuam o conflito principal do trio de protagonistas. “Assassinos” constrói um envenenamento gradual dos personagens, todos eles, e o envenenamento da verdadeira nação americana pelo progresso, no que ele tem de pior.

Martin Scorsese propõe uma análise sobre o ser civilizado, com uma história passada há cem anos, mas bastante atual. Seu cinema continua vivíssimo e sua mão certeira. Aos 81 anos de idade vemos que sua arte fica cada vez melhor. Eu gostaria que o tempo parasse para que esses grandes gênios do cinema, que estão hoje nos seus 70 ou 80 anos de idade, como Scorsese, Coppola, Spielberg, Allen, continuassem a nos proporcionar histórias originais e filmes magistrais. É minha parcela de egoísmo... do bem.