Há uns meses conversava com um amigo sobre a diferença entre perdoar e esquecer, sobre o facto de, quando algo deixa de estar na nossa cabeça todos os dias, se significa ou não que aceitamos, mas mesmo assim não significa que estamos de facto a perdoar.

Esquecer deve ser um dos verbos mais difíceis da nossa vida, e pensar sobre a presença e a ausência ainda mais. Quando li o livro do Miguel Esteves Cardoso, fiquei durante muito tempo a refletir sobre este processo de cicatrização de feridas tão abertas ou tão profundas. Feridas que aceitamos com tempo.

(…) Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?

Como é que se faz? A pergunta é mesmo essa, porque nenhum de nós nasce com uma solução prévia, com uma fórmula mágica, uma força que desfaz essa vontade de querer ficar quando é altura de deixar partir. Quando li, “as pessoas têm de partir”, continuei muito tempo com a mesma pergunta, “sim, mas como é que se faz?”.

(…) As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar.

Aceitar um sentimento é de facto aceitar ter de aguentar, é aceitar ter de enfrentar de frente porque se não dói mais. Nos dias rápidos de hoje, cada vez fugimos mais de sentir, fugimos dessa paciência que é precisa para aceitar a dor, para perceber e processar mais tarde. Se não aceitarmos que a ferida lá está e que vai demorar, nunca vai passar.

(…) É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar.

Para fazer qualquer processo de luto, é preciso lembrar muitas vezes porque recordar é trazer à memória. E são tantas memórias que é preciso sermos colo de nós próprios. Num processo de esquecimento é preciso aceitar a ausência de resposta, de explicação. Ninguém quer entristecer-se, mas às vezes é preciso. Ninguém quer viver com saudades, mas às vezes é preciso. Aceitar que demora, que é uma dor e que mesmo que leve, vai passando a ser uma dor de memória, uma dor menos vivida.

(…) É preciso aceitar esta mágoa, esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar.

Guardo comigo estas palavras sempre: “o esquecimento não tem arte”. Guardo que é preciso aguentar, deixar viver cada memória devagar até ficarmos cansados. Entristecer às vezes, e saber que passa, mas não fugir do que sentimos e aceitar aos poucos, que as coisas duram o tempo necessário. Nada desaparece, mas existe uma viagem bonita pela frente depois, com tempo, depois de enfrentarmos tudo o que é preciso para viver mais em paz.