De boquilha presa à boca, altas e arcadas sobrancelhas, possuidora de um admirável dom oratório – eis Natália de Oliveira Correia, nome completo da poeta, romancista, ensaísta, dramaturga, tradutora, jornalista, guionista, editora e deputada, nascida na Fajã de Baixo (São Miguel, Açores), em 1923. Aos onze anos, partiu com a mãe e a irmã para Lisboa, cidade onde fundou o Botequim – local de tertúlia da elite intelectual portuguesa, durante as décadas de 70 e 80. Viria a morrer na capital, a 16 de março de 1993.

Comumente descrita como uma das mais notáveis figuras da segunda metade do século XX, escapou a todas as classificações que pretenderam dar-lhe. O caráter subversivo que caracterizou a sua vida pessoal e política manifestou-se, de igual modo, numa carreira literária que resiste a rótulos e à sede de compartimentação. Alguns viam na sua escrita ecos do surrealismo, outros apelidaram-na de barroca, mas a publicação de Sonetos Românticos, em 1990, parece corroborar a tese de que estaria muito próxima do romantismo. O próprio sujeito lírico reforça essa convicção, na terceira parte do poema Do amor que acorda o espírito que dorme: “Confia. Eu sou romântica. Não falto”.

E se é verdade que foi na poesia que Natália Correia revelou o esplendor erótico da palavra, a sua ânsia de libertação e a matriz de inspiração clássica, é igualmente verdade que a sua prosa constitui um marco indelével na literatura portuguesa. Veja-se, por exemplo, o romance A Madona, sobre o qual José Rodrigues Miguéis enalteceu o “carácter novo – novíssimo”. Publicada em 1968, a obra desempenhou um papel renovador no romance português, quer pela sua estrutura narrativa não linear, como pelo tratamento e complexidade das personagens, especialmente no que respeita à protagonista, Branca, uma mulher que parte em busca de liberdade e da sua própria identidade.

De feitio intempestivo e sempre excessiva, dada a polémicas e à subversão, Natália Correia foi uma das vozes mais perseguidas e censuradas pelo Estado Novo, facto que não bastou para demovê-la da crítica à ditadura e da luta pelos direitos das mulheres. Mais tarde, já nos anos 80, notabilizou-se como deputada à Assembleia da República, onde exerceu funções até 1991, insurgindo-se, não raro, contra as convenções e normas sociais. Filipa Martins, autora da biografia O Dever de Deslumbrar, sublinha os inusitados comportamentos de Natália Correia durante este período, referindo que os parlamentares é que tiveram de se adaptar à sua insubordinação.

Em Natália Correia, 10 Anos Depois, uma edição da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Fernando Dacosta sublinha precisamente a singularidade do seu temperamento:

Não se tornava fácil compreendê-la. Nem amá-la. Fazê-lo, exigia sentimentos, disponibilidades especiais. Era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas, nem nos modelos, nem nos sentimentos.

Ler Natália Correia é compreender que a sua postura perante a literatura é também um ato de transgressão face a qualquer poder instituído. Em 1966, a publicação da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica valeu-lhe uma condenação de três anos e meio de prisão, com pena suspensa; insubmissa por natureza, escreveu A Defesa do Poeta, ao qual acrescentou a seguinte nota de rodapé:

Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença.

No entanto, em 1972, o seu envolvimento na publicação da obra Novas Cartas Portuguesas – escrita conjuntamente por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – instaura uma nova polémica em torno de Natália Correia e das três autoras. Proibida pela censura, que a rotulou como imoral e pornográfica, a obra aborda temas inteiramente proibidos durante o Estado Novo, como sejam a colonização, a sexualidade feminina, a subordinação da mulher e o aborto, tendo resultado num processo judicial conhecido como as “Três Marias”. Natália Correia, que tinha a seu cargo a direção literária da Estúdios de Cor – responsável pela edição do livro –, ainda que instada a cortar partes do mesmo, manteve-se inabalável nas suas convicções, optando por publicá-lo na íntegra.

No centenário do nascimento de Natália Correia, urge refletir sobre o seu carácter indomável, a sua força desafiadora e o despudor com que travou lutas ainda hoje prementes, como a emancipação da mulher e a veiculação da poesia como elemento indispensável à vida, bem patente em A Defesa do Poeta. É justamente a partir desse poema que nos é dado perspetivar o ímpeto de uma figura visionária, tumultuosa e provocatória, para quem a palavra poética é substância vital.

Não só pelo seu irrefutável valor literário, como pelo facto de constituir um apaixonado tributo à liberdade, A Defesa do Poeta resulta numa soberba argumentação em prol da poesia e dos seus poderes inesgotáveis, dos quais estão privados, segundo o sujeito poético, os “subalimentados do sonho”. Ora, partindo desta ideia de supremacia da poesia, o poeta é, por conseguinte, um ser capaz do indizível, ou melhor, “um vestíbulo do impossível, um lápis/de armazenado espanto”. Assim, as imagens consagradas ao poeta são sempre privilegiadas, na medida em que escapam aos olhos dos demais.

O poema que Natália Correia compôs para ler em tribunal oferece-nos a imagem do poeta como ser profético, investido de poderes visionários e envolto numa aura de misticismo, para quem o acesso ao absoluto é apanágio e o confronto com o interdito é uma constante. Aliás, a sua visão sobre o exercício poético assemelha-se à de Teixeira de Pascoaes, no sentido em que ambos o entendem como uma profecia, o que fica bem patente nos seguintes versos de A Defesa do Poeta: “sou um poeta, jogo-me aos dados/ganho as paisagens que não vereis”. A propósito desta questão, não esqueçamos o que a própria postulou, no JL, em 1991: "Quando um poeta é um ser que não vem do futuro, torna-se prisioneiro da Literatura”.

Assente num estilo discursivo – típico do lirismo de Natália Correia –, A Defesa do Poeta configura um manifesto de veemente desobediência, ao longo do qual são exaltados os privilégios do ofício poético e, simultaneamente, se leva a cabo um louvor da poesia como componente essencial da condição humana. Com efeito, no centenário desta figura absolutamente fulgurante da cultura portuguesa, importa relembrar que, à semelhança do alimento, também “a poesia é para comer”, porquanto constitui matéria indispensável à manutenção da vida. Será este um dos mais importantes legados de Natália Correia, a mulher extraordinária que não se importava com as derrotas: “Só os medíocres sabem o que fazer com a vitória”.