Para Jean-Paul Sartre, apud Reis (1999), “é certo que a palavra poética é capaz de cultivar uma vasta gama de potencialidades significativas sem ter, por isso, que ceder ao imediatismo de menções explícitas. É assim que o pendor esteticista da poesia simbolista pode ser lido como reacção discreta do poeta contra uma sociedade aburguesada e materialista”.

O realismo foi um movimento artístico-literário que surgiu nas últimas décadas do século XIX, na França, no qual os escritores retratavam o Homem e a sociedade tal como eram. Tal como se pode aferir em diversas fontes, ele surge na Europa, especificamente na França, e vai sendo desenvolvido noutros continentes, porém é manifesto em textos em prosa. Todavia, apesar de a obra em pauta neste artigo ser uma colectânea de poemas, este fenómeno vislumbra-se, quiçá porque alguns deles são poemas narrativizantes.

Fazendo uma visita a diferentes mercados informais em Moçambique, podemos deparar-nos com situações diversas, e uma das mais evidentes é a guerra que se desencadeia entre os vendedores informais e as autoridades municipais.

Carlos Serra, apud Das Neves (2015:61), discute a problemática da precariedade da sociedade nos centros urbanos em Moçambique, e afirma que as cidades moçambicanas possuem dois mundos: o não problemático e o problemático.

Neste caso vertente, interessa-me recuperar este último que, segundo o autor, alberga gente cujo horizonte é o dia-a-dia, o seu território é o da astúcia, do entre-dois dos sobreviventes, dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância, dos carteiristas, dos biscates, do vende e revende, da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade” (Ibid).

É possível, na obra em pauta, encontrar evidências que se encaixam melhor neste segundo mundo e, consequentemente, a preencherem as partições avançadas por Serra. Veja-se, por exemplo, na sua primeira parte, os poemas “chegamos” e “sobressalto”.

No primeiro, o sujeito poético diz:

Com a manhã húmida e lânguida/a rebolar sobre a cidade/e o sol a derreter-nos/o gelo suado da paciência/chegamos/viemos quentes/das gélidas catacumbas do destino/infestar o sexo da calçada urbana/com nossas trouxas anti-municipais/de noite somos caçadores de lua/de dia vendedores de rua.

(Faife, 2010:9)

O sujeito poético preocupa-se, a priori, com a descrição da situação em que os vendedores informais se dirigem à praça para desenvolver as suas actividades; depois, com as palavras “gélidas” e “quentes”, faz perceber a sua condição: aquele que vem da catacumba, termo que significa “galeria subterrânea onde se enterravam os mortos e se escondiam os primitivos cristãos.”, para dar a ênfase à precariedade do lugar no qual viviam.

Esta descrição não termina por aqui, avança, fazendo perceber ao leitor o quão a actividade que se desenvole é arriscada, quando diz: “(…) com nossas trouxas anti-municipais/(…)”, ou seja, contra as exigências das autoridades municipais.

Esta descrição, conjugada com a denotação – que, para Silva (1984:655), se entende como o núcleo intelectual do significado, ou seja, a representação fiel de um dado objecto – faz-nos confrontar a realidade expressa no mundo textual com o mundo empírico, o que se verifica pelo uso da expressão trouxas anti-municipais, como forma de retratar a guerra que se verifica entre as autoridades municipais e os vendedores.

Isto nos remete à verossimilhanca, que é uma actividade intrínseca ao poeta; ou seja:

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.

(Aristóteles)

No poema “Chegamos”, nota-se que o sujeito poético se preocupa mais com a denúncia da precariedade do lugar em que os vendedores moram e com a actividade e lugar onde vendem; entretanto, no segundo, “Sobressalto”, procura descrever a guerra entre os vendedores e a polícia municipal, retratando primeiro o medo de a enfrentar. Por exemplo, quando diz:

...Sobressalto e agacho-me/ antenando os instintos/ olhos arregalados/ pulsam-se no peito/ os tambores do medo...

(Faife, 2010:18)

É possível perceber o jogo de palavras que faz para descrever esta guerra entre os vendedores e os polícias municipais, o que se pode verificar no verso em que diz, por exemplo:

...Farejo o silêncio oco dos predadores/ num ímpeto de precaução/ recolho as coisas em comércio/ gazela furtiva/ sobrevivo na selva urbana/ à fome predadora/ do polícia municipal.

(Faife, 2010:18)

Ou seja, após perceber a presença da polícia municipal (que, numa primeira fase, prefere cognomá-la por “predadores”, o que denuncia uma aversão por parte dos vendedores, representados pelo sujeito poético), recolhe os produtos comercializados e põe-se em fuga, entre as pessoas, tudo para que não visse os seus produtos saqueados pela polícia municipal.

Diria, pois, que este texto carrega consigo uma denúncia do real; descreve, denotativamente, os acontecimentos de tal forma que se confronte com uma realidade específica – verossimilhança.

Se formos a fundo, no poema “Repousa”:

Repousa/ o saco que te corcunda o dorso/ pousa/ o corpo sequioso na calçada/ hospeda/ no chão fruta e legumes da época/ batiza-lhes/ um preço com afecto/ e contempla/ a vida germinar um salário/ no solo fértil pavimentado

(Faife, 2010:10)

O sujeito poético procura representar, de forma nua e crua (denotativamente), a situação dos vendedores informais.

Algumas evidências podem ser aferidas noutro poema intitulado “Mola”, onde se pode ler:

Na vertigem do labor/ garimpamos mel e mal/ para termos mil/ pois dinheiro/ é a mola que nos impulsiona/ para a esmola da vida/ somos mais ou menos nós/ quanto mais ou menos mola tivermos/ somos ter ou não ter mola/ moludos ou molwenes.

(Faife, 2010:13)

No qual, essencialmente, o sujeito poético pretende exprimir a ideia de que a actividade informal carrega consigo dois mundos: de ganhos e perdas, representados pelo substantivo e advérbio “mel” e “mal”.

Mas tudo isso com um objectivo único: “Dinheiro”; que, ainda segundo a conclusão que o sujeito poético traz neste poema, “(…) nos impulsiona/ para a esmola da vida (…)”. E termina fazendo perceber que a posse ou não deste dinheiro, tratado na gíria moçambicana e trazido no poema como mola, define quem são “(…) moludos ou molwenes (mendigos).” Isto vem mostrar a relação entre o mundo constituído pelo texto ora em análise e o mundo empírico, tal como alude Silva (1984).

Desta feita, pode-se dizer que a descrição que o sujeito poético faz na sua obra, mediada pela denotação, concorre para a configuração do real na obra, na medida em que, descrevendo no universo textual a realidade tal como ela é, através do uso da linguagem denotativa, convida o leitor a confrontá-la com uma realidade empírica.

Bibliografia

Activa: Faife, h. (2010). Poemas em sacos vazios que ficam de pé, maputo: a2 design, lda.
Passiva: Silva, v. (1984). Teoria da literatura, 6ªed., coimbra: livraria almedina.
Aristóteles (2003). Poética, 7ªed., lisboa. Volume viii.
Reis, c. (1999). O conhecimento da literatura (introdução aos estudos literários. 3ªed., coimbra: livraria almedina.
Macuácua, a., manjate, l. E das neves, o. (2015). Literatura moçambicana da ameaça do esquecimento à urgência do resgate, maputo: alcance editores.
Moisés, m. (2004). Dicionário de termos literários. 12ªed. Revista e ampliada. São paulo: cultrix, pp. 378-380. Serra, c. (2003). Em cima de uma lâmina. Maputo: imprensa universitária.

Referências

1 Evidências que retratam de forma breve a história e as obras publicadas nesta corrente literária podem-se observar em, por exemplo, MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 12ª Ed. Revista e ampliada. São Paulo: Cultrix, 2004. Pp. 378-380.
2 Serra, Carlos (2003). Em Cima de uma Lâmina. Maputo: Imprensa Universitária.
3 Sobre o conceito de catacumba, veja-se no «Dicionário de Língua Portuguesa», Lisboa: Texto Editores, 8ª Ed., 2005.