Pra povos que são de origem sem escrita, de tradição oral, fazer uma travessia pra esse mundo da escrita, só isso já é um épico.

Ailton Krenak

No Brasil existem cerca de 900 mil povos indígenas, que se diferenciam entre 305 povos que falam, pelo menos, 274 línguas, de acordo com o IBGE de 2010. Mesmo diante de toda essa diversidade cultural, os povos indígenas durante muito tempo foram narrados e descritos por escritores não indígenas que, em geral, os resumiam a estereótipos universais, desconsiderando a plurietnicidade dos povos. Os indígenas eram narrados como selvagens, atrasados. Quando protagonistas das histórias, eram sempre tutelados por algum personagem não indígena. As histórias e cosmologias dos diferentes povos foram folclorizadas, deturpadas, apresentadas como conhecimentos inferiores, traduzidas equivocadamente e rotuladas por ‘mitos’ indígenas.

As consequências desses diferentes processos foram e ainda são catastróficas. Elas causam estereótipos, geram preconceitos, além de tentar silenciar qualquer possibilidade de protagonismo dos povos indígenas.

A partir de 10 de março de 2008, a Lei 11.645 torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. A intenção é a partir dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, seja ele particular ou público, modificar a visão da sociedade, a partir dos jovens estudantes, sobre as diferentes culturas presentes no cenário brasileiro.

Uma breve contextualização da literatura indígena no Brasil

As pesquisas sobre literatura indígena no Brasil apontam sua inauguração na década de 80 com a publicação da obra Antes o Mundo não existia, narrada e escrita pelos dessana Umusi Pãrõkumu e Tõrãmu Kehíri, datilografada, reescrita e organizada, por Berta Gleizer Ribeiro e publicada pela primeira vez pela editora Livraria Cultura Editorial em 1980.

No entanto, em 1977, era publicado pelo Summer Institute of Linguistic, a obra Aypapayü'üm'üm ekawen - Histórias dos Antigos Mundurukú – Volume 1, contado por Ciriro Waro, Caetano Cabá , Amancio Cabá e Floriano Tawe; traduzido por Lúcio Alves e Afonso Cabá e tendo Martinho Burum como redator (todos munduruku). No ano seguinte é publicado o Volume II e, em 1978, o Volume III. Portanto, a literatura indígena brasileira é iniciada antes da década de 80.

No entanto, é nos anos 80 que a literatura indígena ganha proporções por meio da escrita e do protagonismo de diferentes indígenas, entre eles, Eliane Potiguara, Daniel Mundurku, Kaká Jecupé, Graça Graúna, Ely Macuxi, Olívio Jecupé e Ailton Krenak.

Literatura indígena e movimento indígena andam de mãos dadas. Pois foram influências de movimentos como a União das Nações Indígenas (UNI) e a Aliança dos Povos da Floresta, ambas iniciadas nos anos 70 que, de alguma maneira, influenciaram na produção literária engajada e associada as causas do movimento indígena.

Se hoje temos uma ampla e considerável representatividade de escritoras e escritores indígenas, muito se deve ao legado das lutas e resistências do movimento indígena e de seus primeiros protagonistas. É sempre importante olhar para o passado na tentativa de compreender o presente e projetar um futuro.

Diferenças entre literatura brasileira e literatura indígena

Pode parecer que se trata do mesmo modelo de literatura, mas não. De maneira sintética e objetiva podemos citar algumas diferenças entre os dois modelos de literatura.

  • Na Literatura Brasileira, a autoria não é indígena e quando o livro editorial trata de propriedade intelectual e/ou temas indígenas, todos os direitos autorais não vão para o(s) indígena(s). Mesmo quando a história contada seja dos povos indígenas;
  • Em relação a temática indígena, a literatura brasileira se divide em duas categorias: literaturas indigenista e indianista. Por outro lado, na literatura indígena, os autores são os próprios sujeitos indígenas que podem escrever de maneira coletiva ou individual.
  • Na literatura indígena, em relação aos direitos autorais, todo o direito e mérito também é do próprio sujeito indígena, embora ela seja ao mesmo tempo um autor individual e coletivo.
  • A escrita literária indígena pode ser de ficção, não ficção, podendo partir da oralidade para a escrita alfabética.

O mulherio das letras indígenas

É nesse cenário que em 2022, com apoio do Fundo Social Elas+, um coletivo de mulheres indígenas edita e publica o I Álbum Biográfico Guerreiras da Ancestralidade, que reúne biografia, prosa ou poesia de mais de 70 escritoras indígenas de diferentes povos, de forma gratuita. Além do e-book distribuído gratuitamente, a obra física, com mais de 200 páginas, foi lançada no V Encontro Nacional do Mulherio das Letras, em novembro, na cidade de João Pessoa, RN, levando uma comitiva com um grupo de 15 autoras Indígenas.

Um segundo lançamento foi realizado no SESC Pinheiros, na cidade de São Paulo nos dias 07 e 08 de fevereiro de 2023. As atividades contaram com a presença de seis mulheres da região do norte do país e uma da região nordeste, todas escritoras e membras do coletivo Mulherio das Letras Indígenas.

Um terceiro lançamento aconteceu no encontro Mulheres em Movimento, organizado pelo Fundo Social Elas+, na cidade do Rio de Janeiro. Nessa atividade, três escritoras e membras do coletivo Mulherio das Letras Indígenas representaram o coletivo.

Por entender que a literatura indígena é um espaço de luta, resistência, cura e afirmação indígena, o coletivo busca firmar suas atividades e vislumbra uma segunda publicação das escritas de diferentes mulheres indígenas. No prefácio do Álbum Guerreiras da Ancestralidade o título que inicia a escrita afirma que São Sagradas, as Mulheres Indígenas, além de rememorar o direito de viver bem em um ambiente saudável garantido pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a escrita denuncia os malefícios provenientes da proposta de Marco Temporal. Em equilíbrio de escrita, o Prefácio chama a atenção para a importância da preservação dos diferentes biomas brasileiros e para finalizar a escrita, a escritora Eliane Potiguara afirma que esta antologia é um grande incentivador de almas e consciências.

Na tentativa de realizar o primeiro encontro nacional do Mulherio das Letras Indígenas, o coletivo busca parcerias e patrocinadores para realizar em outubro de 2023, na cidade do Rio de Janeiro o I Encontro Nacional do Mulherio das Letras Indígenas. Esperamos que ouvindo ao chamado da Apresentação do Álbum Biográfico que grita:

Venham, mulheres, homens e crianças de nossa terra, conheçam e saboreiem as palavras de nossas irmãs, que nos devolvem nossas origens, a palavras de nossas avós, bisavós, tataravós, senão de sangue, por certo de palavras!

Que financiadores e patrocinadores possam se aproximar e apoiar esse coletivo.