Todos nós chegamos a conhecer alguém que vomita arco-íris quer queiramos, quer não. Eu, pessoalmente, sempre tive mais respeito por um regurgitar normal, acho que o vómito comum é bem mais digno.

Esta reflexão foi-me provocada por uma situação bem corriqueira, sendo sincero. Há não muitos dias, na livraria, passei um livro infantil para as mãos de uma cliente, assim em jeito de sugestão.

Nem um segundo inteiro gastou a olhar a capa - “hum, este não...” - tinha na cara o olhar de quem tinha recebido como sugestão um “Mein Kampf” ou um “Livro de S. Cipriano” para o filho ler. O nome deste era bem mais pacífico: “Um Abrigo para a Tristeza”.

Aquilo intrigou-me:
- Tem alguma preferência mais específica? Talvez eu possa ajudar a encontrar algo mais adequado para a senhora.
- Livros sobre tristeza? Oh, não, querido, queria algo com um astral mais alto! Mesmo para mim, só procuro livros que tragam boa energia! - Passou-me o livro para as mãos de novo.

(Mais uma vez se impunha a mesma conclusão: Nunca fui bom vendedor. Sei vender livros bons, não sei vender o que as pessoas querem comprar - Raramente ambos coincidem).

Aquela reação da cliente despertou-me uns quantos flashbacks. Afinal, quantas vezes não me apareciam clientes que só aceitavam sugestões de livros se eles fossem impregnados de uma positividade absurda? Lá se vão os nossos Shakespeare, Virginia Woolf, Dostoiévski, Jane Austen, Edgar A. Poe, Clarice Lispector, Fernando Pessoa... Tudo por água abaixo, que já não se quer cá coisas tristes.

Passou então, em role, pela minha memória, uma vasta multidão de senhoras e senhores que eu já havia atendido. Barafustavam na minha cabeça, passando quase em cortejo. Aquilo era a reação óbvia... Eram essas mesmas pessoas que compravam os “livros de luz” e os “livros da cura” (se fossem senhores, certamente seria algo mais do género: “o livro dos milionários” que, curiosamente, são sempre best-sellers, mas nunca se ouve um milionário agradecer ao escritor – cambada de ingratos, não?).

Desconfio, há já alguns meses, que um dia, as prateleiras rechear-se-ão de livros de luz, livros de cura, livros de amor, livros do segredo... O que é uma pena, porque eu sempre fui um antiquado e, consequentemente, fervoroso adepto dos livros de papel.

No dia que este futuro distópico acontecer, vamos tentar desabafar com os nossos amigos e eles vão, invariavelmente, responder-nos:
- Aconteceu porque tinha que ser. Tens de ser mais positivo para manifestares coisas boas na tua vida.

E por muito que pensemos: “como raios haveria eu de manifestar uma grua a não cair em cima da minha casa?”, não vamos ter a capacidade de verbalizar nada.

Vai ser aí que nos vai ser vedado o acesso à empatia do outro. É esta a consequência do pensamento positivo em excesso. A crença no total controlo do que nos acontece faz, inevitavelmente, com que estejamos mais inclinados a julgar o outro por negativo, do que a reconhecer que a vida tem o seu ‘quê’ de tragédia e de que ela mesma deve ser aceite e cuidada com carinho. Que mal nos fará ceder um pequeno abrigo à tristeza do outro? E quem diz a do outro, diz a nossa. E quem diz tristeza diz embaraço, aflição, angustia, desânimo...

Existe, perdida por esta fina malha de fios confusos a que chamamos internet, uma pequena frase que sempre achei maravilhosa: “Everybody is broken, that’s how light gets in”. Ela é erroneamente associada ao Hemingway e, apesar disso, ela não podia ser menos errónea. Algum agente do caos deve ter manifestado com muita força esta “feliz” coincidência.

O que é que se depreende da frase? É preciso estar-se partido para a luz entrar em nós. É preciso o mal para o bem. No fundo, mais sintetizado o seu sentido: o ser humano é multifacetado.

A frase, se bem procurada, pode ser encontrada também na cultura popular. Muitas vezes recordo, quando ainda vivia numa pequena vila perdida no centro deste confortável rectângulo, queixar-me da chuva. A chuva era triste, deixava-me rabugento e triste.

A esta minha reação de inocente petiz, as pessoas que trabalhavam nas quintas, que sabiam um segredo qualquer a que, na época, me era vedado o acesso, respondiam sempre com a mesma prontidão: - Pois, rapaz, mas ela é cá precisa.

Soltavam, juntamente com a frase, um sorriso caloroso que, na época, me parecia de escárnio.

É mesmo precisa. Percebi isso alguns verões depois. Precisamos de mais livros sobre abrigarmos os nossos sentimentos menos alegres, de mais ‘darth vaders’ a convidar-nos para o ‘dark side’, de mais frases inventadas que um escritor nunca disse... Precisamos de mais senhoras do campo a dizer que a tristeza também é cá precisa.

Será que é pedir muito? Talvez seja... Mas não há muito que me reste fazer, não é verdade?...

Bem, vou resignar-me apenas, e manter o meu pensamento positivo quanto a isto!