Como estamos pensando e como estamos convivendo entre o wi-fi e o consumo? O que pensamos ao acordar? O que tenho feito com as minhas atitudes? Questões como essas interferem para um novo momento de reflexão entre o ser humano e a comunidade. Antes, precisamos entender o que movimenta as convivialidades. Depois, precisamos pensar nos caminhos que alimentam nossas convivialidades.

Para Marcel Mauss, o convivialismo é a arte de viver junto 'contrapor-se sem se massacrar e se doar sem se sacrificar um ao outro' 1. Há de se considerar que, para se dar sem se sacrificar, é preciso uma mudança no que se refere as formas de convivência numa democracia pelo pensamento para o bem viver. Como diz Hanna Arendt, devemos querer o bem, fazer o bem, e principalmente, pensar o bem. Quando o filósofo Nietzsche escreveu sobre eis o homem (Ecce homo)2 para argumentar a encenação do homem diante das relações de poder, ele estava querendo mostrar a decadência do ser humano. Para tanto, o filósofo Heidegger diz que a obra é um 'mise-en-scène do homem [...] um fenômeno de dimensões globais...'

Embora sempre necessitemos de um autoconhecimento, com a chegada do wi-fi, o mundo transformou o ser humano em racional para relacional. Passamos a nos conectar virtualmente. Por sua vez, esse homem relacional invoca momentos de solidão pautado na era de sentimentos descartáveis, como diz Bauman na modernidade líquida que desfruta de momentos e sentimentos fugazes e de esfriamento da compaixão que desencadeia na crise da sensibilidade.

Num território envolvido pela ética da estética, o autor provocativo Ricardas Gavalis afirma que estamos vivendo 'a era dos diletantes'. Ou seja, a era dos amadores onde tudo escapa por um mar de negligência. Para onde foram nossas sensibilidades? O escritor russo Yevgeny Zamyatin anunciava a morte do clássico e a morte do passado, ou seja, a morte do humanismo.

Encontramos no romance de Samuel Butler intitulado 'Erewhon' uma sátira fundamentada na tradição vitoriana que não é renovada, uma sociedade automatizada e sem alma. Cuidam das fachadas das igrejas e pouco se importam com a fé. Todos esses autores tinham o sentido de futuro. Os autores que traçam em suas obras o sentido de futuro esclarecem com certa ironia, o desempenho das fantasias políticas de sua época. Como exemplo, temos hoje em dia a separação de tarefas que foram inseridas pela convenção do sistema industrial, onde a sua função é somente sua, na famosa escala de trabalho.

Recentemente fui a um hotel no interior do Nordeste do Brasil. Era uma casa antiga que se transformou num hotel. Tinha uma área grande com muitos jarros de plantas de várias espécies. Mas, o que chamou atenção foram as plantas que estavam secas, algumas com sinais de morte, outras pedindo ajuda e clemência por um pouco de água. Solicitei na recepção do hotel um balde e resolvi aguar algumas plantas que estavam ao meu alcance. Fui novamente à recepção e perguntei ao recepcionista por que as plantinhas estavam secas. O rapaz, um jovem serelepe que estava com o celular na mão me disse todo contente que o encarregado desse setor está de folga e as meninas da cozinha estão sobrecarregadas e só quem colocava água era a dona do hotel, mas, ela adoeceu. Pensei em dizer, e o que custa você aguar as plantas? Este exemplo ilustra como estamos vivendo sem a comunidade.

É um reflexo da separação entre ciência e sentimentos. Digamos que o conceito de comunidade deve pautar os dias atuais. Sem comunidade não somos nada, não iremos a lugar nenhum. A comunidade para Martin Bubber é a célula que restaura as convivências tornando o mundo mais humano. Ele apresenta a comunidade como grau de espontaneidade dos relacionamentos humanos onde apresenta determinação, autonomia e aliança. Enquanto o Estado é “o status, situação, a condição peculiar da não realização da verdadeira comunidade”. Ou seja, o Estado é inimigo de qualquer comunidade para Bubber. Nesta mesma linha de pensamento, 'Veem-se aí as influências do sociólogo alemão Ferdinand Tonnies, que é quem melhor trabalhou, nessa época, as distinções entre comunidade e sociedade, tendo investigado profundamente as estruturas dos mundos rural e urbano, tendo este último se voltado predominantemente para o lucro. Ele as distingue por dois tipos específicos de vontade: a vontade integral, em que a ação é fruto da tradição e dos costumes que se voltam para a sobrevivência da comunidade, e a vontade racional, em que a ação é estabelecida por metas previamente escolhidas pelos indivíduos.'3

Então, digamos que para vivermos em comunidade devemos nos afastar do dualismo, pois a comunidade transforma, transfigura e revela as ações humanas. É no cotidiano das comunidades que os dispositivos para uma vida em solidariedade se faz, pela autonomia criando responsabilidades com o mundo. Uma dinâmica convival não vai deixar, por exemplo, as plantas, do referido hotel, ficarem secas e murchas. Haverá o sentido de futuro. O trunfo de ter uma vida convival é a construção de uma matriz axiológica de valores entre a educação e a cultura.

Desse modo, existem vários conceitos de comunidade. Para Zigmunt Bauman é o aconchegante coletivo. Encontramos nas periferias, também chamada de comunidades, esse aconchegante, há uma troca de favores entre as pessoas. Uma ajuda mútua intencional. Daí, percebemos que no cotidiano dos trabalhadores, ou seja, nas culturas populares, apareça a fotografia da estética da comunidade.

A estética da comunidade está na bolsa dos trabalhadores, rasgada, surrada, bufenta que carrega materiais para construção, a marmita do almoço, utensílios de higiene pessoal e o suor do peso dos sonhos entre os dias de chuva e sol porque percurso também é vida. A estética da comunidade está no chinelo carcomido, no tênis descolado, no cabelo desarrumado, e no olhar de sonhos esmagados por um sistema que corrompe qualquer vivência convival. Para isso, o livro de Richard Sennet sobre a corrosão do caráter no capitalismo pode ajudar a entender essa dinâmica. De tal maneira, a comunidade se reconhece. São espaços que configuram o cotidiano, que transformam as trocas de saberes, que refazem sentimentos mesmo esmagados.

Para Buber, 'a comunidade tem por fim a vida e si mesma. Ela acontece quando homens maduros estão dispostos comunitariamente num fluxo de doação e entrega criativa que os faz crescer e dá sentido às suas vidas.' Ela pretende ser a vida liberta de limites e conceitos de tal modo que comunidade e vida se tornam uma coisa só. Buber diz que 'toda vida nasce de comunidades e aspira a comunidade. Ela é fim e fonte de vida. Vida e comunidade são os dois lados de um mesmo ser.'4 As comunidades se desenvolvem a partir das sociedades. Para Edgar Morin, 'As sociedades humanas desenvolveram e complexificaram esse duplo caráter sociológico: o de Gesellshaft (relações de interesse e rivalidade) e de Gemeinshaft (comunidade).' O sentimento de comunidade é e será fonte de responsabilidade e de solidariedade, sendo estas, por seu turno, fonte de ética.5

A construção do pensamento social reflete no imaginário popular para configurar e atrair dispositivos de convivialidades. O dispositivos de convivialidades são solidariedade, troca de favores, ajuda de sobrevivência, rivalidade sadia, comunicação e afetos, entre outros, que surgem em cada espaço convival. Para tanto, quando fui entrevistar um vaqueiro no semiárido do nordeste do Brasil, ele respondeu com muita segurança a pergunta sobre medo, que também faço a vocês. Do que você tem medo? Ele me respondeu cutucando o dente com a ponta de um facão e cuspindo o resto de comida e com muita veemência, ele disse: só tenho medo dos castigos de Deus! Ou seja, as configurações do divino e do sagrado perpassam pelas convivialidades onde o grau de costumes estabelecem um padrão comunitário entre os mistérios que rodeiam a vida em comunidade. Dessa maneira, a maioria, também tem medo dos castigos de Deus. Existe comunidade, quando todos dividem sua comida, sua fé e sua alegria. Necessariamente, por vezes, não precisa de revolução para ressignificar uma comunidade. O próprio movimento do cotidiano encarrega-se de mudar e transformar as convivialidades. Então, as comunidades reinventam seus códigos de honra para que seu dia a dia tenha fluidez no desenrolar dos acontecimentos. Já no livro de Butler, os 'Erewhonianos enviam caixas de lágrimas artificiais que são usadas pelos chorosos em público. As lágrimas variam em número de intimidade. Erowhon é um país em que o comportamento parece ser julgado bizarramente.'6

Assim, devemos compreender que as comunidades reatualizam seus julgamentos em detrimento das convivialidades. Algumas comunidades reproduzem formas de mobilização social para sobrevivência de sua tradição. Como exemplo temos o arruado, ou arruadinho do Engenho Velho da Várzea7, ou o Arruado do Cavouco, ou ainda como seu Luiz Eurico de Melo Neto8 diz que é um arquipélago dos saberes acadêmicos no Recife, Pernambuco, que se transformou numa resistência entre a Universidade Federal de Pernambuco com atividades de convivialidades que extrapolam as dualidades do mundo da ciência e do sistema. Pois bem, se a cultura é a realização do homem, é na comunidade que ela se realiza. Mesmo que a tecnologia tenha ultrapassado a política é na comunidade que ela se ajusta aos afazeres e atitudes humanas numa dinâmica entre as convivências. São os costumes, um amuleto para compor a lógica nas comunidades entre o divino e a realidade. Daí, só a comunidade transforma as convivialidades, então, eis a Comunidade!

Referências

1 Convivialismo: o que é isso? Uma conversa com Alain Caillé.
2 É um procedimento gratuito e frequentemente praticado tomar essa autopublicação de sua própria natureza e vontade como o prenúncio da emergente loucura. Entretanto, Ecce Homo não é nem uma questão de biografia de Nietzsche nem da pessoa do ‘Senhor Nietzsche’. Na verdade, é uma questão de um ‘destino’, o destino não de um indivíduo mas da história da era dos tempos modernos, do fim do Ocidente. Contra sua vontade mais íntima, Nietzsche, com outros, tornou-se o estimulador e propagador da intensificação da autoanálise psicológica corporal e espiritual e da mise-en-scène do homem. [...] um fenômeno de dimensões globais. (Heidegger,1987, p.3-4) Aspectos filosóficos da narrativa do Ecce homo de Nietzsche: uma perspectiva em autoencenação
3 A Noção de Comunidade em Martin Buber de Ozanan Vicente Carrara
4 A Noção de Comunidade em Martin Buber de Ozanan Vicente Carrara. Buber, 1987, p. 34.
5 Comunidade: a busca de um conceito Artur Lazzari 1; Jane M. Mazzarino 2; Luciana Turatti (Morin, 2011, p. 23).
6 A sátira de Samuel Butler como debate cultural – Abordagem Crítica a Erewhon por Margarida Rendeiro.
7 Por que Engenho do “Meio”? Considerando que a Várzea do Capibaribe tinha o seu núcleo de povoação, lá no pátio das Igrejas e nos seus engenhos, que se estendiam por todo o oeste da cidade do Recife, região compreendida entre as margens do Capibaribe, indo até o açude da Prata, a noroeste, e até o ribeiro Pacheco, a sudoeste, alcançando, mais a leste, a região do Forte do Arraial Novo, no lugar hoje chamado de Torrões e a oeste, adentrando em parte do que é hoje Camaragibe, e o lugar chamado UR-7 – Jardim Teresópolis; podemos imaginar porque o Engenho pertencente a Jacob Stacour, que tinha como seu procurador o João Fernandes Vieira, recebeu o nome de MEIO da Várzea. É que aquele pequeno engenho banguê, do velho judeu-holandês, de sobrenome Stacour (ou Stacower), ficava bem no meio dessa região de monocultura da cana de açúcar, entremeada pela Mata Atlântica. Pois bem, ali, bem no centro do que hoje é o Campus Recife da UFPE, ainda estavam erguidas, até meados de 1946, a vivenda do proprietário, a moita do engenho (fábrica de purgar o açúcar) e a senzala, depois transformada em casario dos trabalhadores. Era um engenho central, que viria a ser a Usina Meio da Várzea, que funcionou entre 1904 e 1934,(já sob a propriedade de Ignácio Barros Barreto), quando foi extinta... O Arruado do Engenho do Meio e sua pequena diáspora.
8 Blog do seu Eurico sobre o arruadinho.