A judicialização da saúde no Brasil tem ganhado relevância nos últimos anos, destacando problemas estruturais do sistema de saúde e questões éticas relacionadas à prática médica. Este fenômeno, ainda que presente em outras nações, assume no Brasil características singulares, relacionadas à garantia do direito constitucional à saúde e ao subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS). A seguir, discutiremos as causas, impactos e particularidades da judicialização no Brasil, com comparações internacionais e dados atualizados.

O crescimento da judicialização no Brasil

A judicialização da saúde no Brasil vem crescendo de forma exponencial. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2008 e 2017, houve um aumento de 130% nas demandas judiciais relacionadas à saúde. Em 2022, havia mais de 520 mil processos tramitando sobre o tema, o que reflete uma busca constante da população pela efetivação de seus direitos. No mesmo período, 292 mil incidentes evitáveis foram registrados na assistência à saúde, resultando em danos aos pacientes.

No caso específico de "erro médico", os processos também registram crescimento expressivo. Em 2023, cerca de 25 mil processos estavam relacionados a erros médicos, o que representa um aumento de 35% em relação a 2020. Especialistas destacam que esse crescimento está relacionado à maior conscientização da população sobre seus direitos e à precariedade estrutural do sistema de saúde.

Profissionais mais impactados e especialidades envolvidas

Determinadas especialidades médicas são mais frequentemente processadas no Brasil. Dados do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) revelam que ginecologistas e obstetras lideram o ranking, com 42,60% dos processos, seguidos por traumatologistas e ortopedistas (15,91%), cirurgiões plásticos (7%), cirurgiões gerais (7%) e clínicos gerais (6%). Estes profissionais lidam com procedimentos de alta complexidade, que frequentemente envolvem maior risco e, consequentemente, maior potencial para litígios.

Entre os principais motivos para ações judiciais, destacam-se:

  1. Erros de diagnóstico: diagnósticos equivocados ou tardios, muitas vezes associados à falta de recursos no sistema público.

  2. Complicações em procedimentos cirúrgicos: incluem cirurgias plásticas estéticas, que, apesar de não serem emergenciais, atraem muitos processos devido a expectativas frustradas.

  3. Falta de consentimento informado: a ausência de explicações adequadas sobre riscos e benefícios de tratamentos é um fator recorrente.

  4. Negligência no atendimento: muitas vezes associada à sobrecarga de trabalho dos profissionais e à escassez de recursos no SUS.

Motivos do aumento da judicialização

O crescimento da judicialização da saúde no Brasil pode ser atribuído a múltiplos fatores:

  • Deficiências no SUS e saúde suplementar: o SUS enfrenta desafios relacionados ao subfinanciamento, falta de medicamentos e longa espera por consultas e procedimentos. Na saúde suplementar, os litígios geralmente estão relacionados à negativa de cobertura por parte de operadoras de planos de saúde.

  • Maior conscientização da população: o aumento do acesso à informação faz com que mais brasileiros estejam cientes de seus direitos. Esse fenômeno é intensificado pelo papel da mídia, que frequentemente destaca casos de sucesso em demandas judiciais relacionadas à saúde.

  • Baixa qualidade na formação médica: a formação médica insuficiente, aliada à alta carga de trabalho, resulta em um número maior de erros médicos e insatisfação dos pacientes.

  • Judiciário ativista: no Brasil, a Constituição Federal assegura o direito à saúde como um dever do Estado. Isso cria um ambiente em que o Poder Judiciário frequentemente intervém para garantir esse direito, emitindo decisões que obrigam a União, estados ou municípios a custear tratamentos e medicamentos.

Impactos da judicialização no sistema de saúde

A judicialização da saúde tem consequências significativas tanto para o SUS quanto para a saúde suplementar:

  • Impacto financeiro: a obrigação de custear medicamentos de alto custo, muitas vezes não incorporados às listas de fornecimento regular do SUS, compromete o orçamento público. Em 2022, o governo federal gastou mais de R$ 1,5 bilhão para atender demandas judiciais específicas relacionadas à saúde.

  • Prioridade a demandas individuais: a judicialização pode favorecer demandas individuais em detrimento de políticas públicas coletivas. Isso leva à desigualdade no acesso a tratamentos e compromete o planejamento de ações estratégicas para atender a maioria.

  • Sobrecarga do judiciário: o aumento de processos sobrecarrega o Judiciário, atrasando a resolução de outros casos e comprometendo a eficiência do sistema como um todo.

  • Insegurança profissional: a possibilidade de processos judiciais gera um ambiente de insegurança entre os profissionais de saúde, impactando diretamente sua prática e relação com os pacientes.

Comparação Internacional

A judicialização da saúde não é exclusividade do Brasil, mas apresenta diferenças em relação a outros países:

  • Reino Unido e Canadá: esses países possuem sistemas de saúde universalizados que garantem maior equidade no acesso aos serviços. As disputas na saúde são resolvidas, em grande parte, por órgãos administrativos, o que reduz a necessidade de intervenção judicial.

  • Estados Unidos: nos EUA, onde o sistema é predominantemente privado, a judicialização está mais relacionada a disputas contratuais entre pacientes e seguradoras. A cobertura de tratamentos e custos elevados são os principais motivos de litígio.

  • América Latina: países como Argentina e Colômbia enfrentam desafios similares ao Brasil. Na Colômbia, por exemplo, as demandas judiciais também buscam a garantia de medicamentos de alto custo, embora o país tenha um modelo de saúde misto que tenta minimizar desigualdades.

Soluções e caminhos para reduzir a judicialização

Várias estratégias têm sido propostas para mitigar os impactos da judicialização da saúde no Brasil:

  1. Educação e capacitação: investir na formação contínua de profissionais de saúde, com foco em reduzir erros e aprimorar a relação médico-paciente, é essencial para minimizar litígios.

  2. Ampliação do financiamento do SUS: um aumento do financiamento do SUS permitiria a ampliação de serviços e a inclusão de novos medicamentos no rol de fornecimento, reduzindo a necessidade de demandas judiciais.

  3. Fortalecimento de órgãos administrativos: a criação de câmaras técnicas e a mediação administrativa para resolução de conflitos podem reduzir a carga sobre o Judiciário.

  4. Maior diálogo entre setores: a cooperação entre gestores do SUS, operadoras de saúde e o Poder Judiciário é fundamental para encontrar soluções que equilibrem os interesses de todas as partes.

  5. Campanhas de conscientização: educar a população sobre as limitações do sistema de saúde e os critérios para judicialização pode reduzir demandas desnecessárias.

Considerações Finais

A judicialização da saúde no Brasil reflete tanto a busca pela garantia de direitos constitucionais quanto a fragilidade estrutural do sistema de saúde. Comparado a outros países, o Brasil enfrenta desafios únicos, como o ativismo judicial e o subfinanciamento crônico do SUS.

Para enfrentar esse fenômeno, é necessário um esforço coordenado que envolva os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como os gestores da saúde pública e suplementar. Apenas por meio de reformas estruturais e de um diálogo intersetorial será possível construir um sistema de saúde mais justo, eficiente e acessível para todos os brasileiros.

Referências

Conselho Nacional de Justiça. (2019). Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução. Disponível em: CNJ.
Miranda, W. D. de et al. (2021). A encruzilhada da judicialização da saúde no Brasil sob a perspectiva do Direito Comparado. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, 10(4), 197-219. Disponível em: Arca Fiocruz.
Conselho Nacional de Justiça. (2022). Dados processuais de saúde podem ser monitorados.