Acredito que entre os povos primordiais que habitaram o planeta e sobretudo a África dos tempos imemoriais, em que tudo era para todos, não havia necessidade de falar em direitos humanos.
Mas ao longo da história, a humanidade vem experimentando as mais diversas formas de exclusão, com particular destaque para as que se baseiam na raça, género, classe e religião, mas abrangendo ainda as que se prendem com a deficiência física e mental, grau de instrução, orientação sexual, cor política, idade, entre outros.
Paulatinamente o homem branco, erudito, oriundo de países de culturas e línguas hegemónicas e detentor de riquezas, normalmente adquiridas na base da exploração, foi-se convertendo numa espécie de ser considerado de categoria superior entre os humanos e arrogando-se cada vez de mais prorrogativas.
Contudo desde cedo também começaram a aparecer homens e mulheres de boa vontade que, individualmente ou em associações diversas, procuraram combater as ideias de exclusão e discriminação, com base no princípio da imanente igualdade entre os seres humanos.
Destes importa realçar o papel de profetas como Jesus Cristo, Moisés, Confúcio, a Deusa MAAT e outros, talvez os primeiros defensores dos direitos humanos que o mundo conheceu.
Isto dito e entrando na temática do respeito dos direitos humanos cabe liminarmente afirmar que não obstante os avanços em termos de reconhecimento dos direitos, paradoxalmente, a grande constatação a fazer é que, embora o dever de promoção e proteção destes direitos e das liberdades fundamentais caiba em prima facie aos estados, são eles muitas vezes os primeiros a incorrer na sua violação.
A comunidade internacional teve cedo a perceção deste facto e desde a célebre Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 que ela se vem dotando de instrumentos jurídicos internacionais destinados a fazer frente a tais violações.
Efetivamente o exercício abusivo do poder vem conduzindo à necessidade de utilização de sanções e estas vem ganhando cada vez maior terreno para impedir a ação dos que utilizam da força das armas e do abuso do poder.
Muitos países mais democráticos adotam mecanismos nacionais e regionais de promoção e proteção dos direitos humanos.
O mundo tem presenciado também, a própria Sociedade Civil de cada país a dotar-se dos mecanismos necessários a intervir face às violações.
Para além disso não podemos ignorar os esforços hercúlios dos defensores dos direitos humanos para fazer vingar a força do direito, da moral e da palavra.
Atentemos agora de forma sintética à compreensão de cada uma destas estruturas começando com aquelas que fazem parte do mecanismo Internacional de defesa dos direitos humanos.
Há já mais de 70 anos foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o instrumento fundamental e basilar nesta matéria, com que a humanidade, através do sistema das Nações Unidas, se autocontemplou no século vinte.
Trata-se de um texto com grande força moral e que está na base de todo o desenvolvimento deste ramo do direito. A declaração foi preparada por um Comité de redação e teve como autor principal o Prémio Nobel René Cassin, sendo de assinalar que uma mulher, Eleonor Roosevelt foi também uma das redatoras. Ela foi Adotada no dia 10 de dezembro de 1948 escassos anos após a criação das Nações Unidas.
A declaração foi posteriormente completada pelos pactos internacionais sobre direitos civis e políticos (PIDCP) e sobre direitos económicos sociais e culturais (PIDESC) de 1966 que, contrariamente à declaração, tem caráter coersivo, comprometendo-se os Estados-parte a observar os direitos neles contidos.
Do PIDCP cabe realçar a consagração dos direitos dos povos a disporem de si mesmos, à igualdade perante a lei, a proibição da tortura e da escravidão, a um julgamento justo, a ir e vir, à liberdade de opinião, pensamento e religião, à vida, à associação e participação na vida política.
No PIDESC estão agrupados os direitos económicos de viver livre da fome, a um padrão de vida mínimo com vestuário e moradia, ao trabalho; nos direitos sociais dá relevo à segurança social das famílias, o acesso aos serviços de saúde física e mental; e nos direitos culturais elege o direito à educação, à participação na vida cultural e de beneficiar dos progressos científicos assim como direito de expressão das minorias étnicas e raciais, de género de orientação sexual.
Por conseguinte tanto a declaração como os pactos procuram abranger a totalidade dos direitos humanos já reconhecidos e aplicam-se a todos os países do sistema das Nações Unidas.
Aqui chegados importa lembrar a célebre frase da filósofa Hannah Arendt que nos assegura que “os direitos humanos não são um dado mas sim um construído” e essa construção projeta-se dinamicamente até aos dias de hoje em que novos direitos são reconhecidos como o direito à alimentação, à água e à felicidade.
Pergunto-me, um pouco apreensiva, até que ponto a inteligência artificial em rápido desenvolvimento vai impactar os direitos humanos.
Hoje o edifício conceptual internacional referente aos direitos humanos do sistema onusiano encontra-se integrado pelos mais diversos e pertinentes tratados e convenções de vocação universal, cobrindo os mais variadas áreas desde a mulher, passando pelas crianças e pelos mídia.
Destes tratados e convenções importa realçar pelo seu impacto nos países africanos, além dos já mencionados pactos internacionais, a convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, a convenção sobre os direitos da criança, a convenção contra a discriminação racial, a convenção contra a tortura e a convenção sobre trabalhadores migrantes e membros das suas famílias.
Estas são as mais incisivas e que mais tem a ver com a realidade africana.
Para avaliar o nível da aplicação destes instrumentos em cada país integrador do sistema onusiano, as Nações Unidas estabeleceram uma Comissão de direitos humanos, composta de 53 Estados membros.
O universalismo dos Direitos Humanos encontra-se bem representado na defesa que cada comunidade faz de lhe pertencerem as origens mais remotas da ideia destes direitos.
Assim os europeus entendem que o conceito de direitos humanos vai buscar a sua origem longínqua às instituições da Grécia antiga; os asiáticos atribuem a sua origem a Confúcio; e os africanos entendem que o respeito pelos direitos da pessoa humana estavam inscritos nas sociedades tradicionais. Senghor defende que esse respeito remonta a tempos imemoriais e o conhecido historiador burquinabê Joseph Joseph Ki-Zerbo vai buscá-lo ao Egito do antigo império.
Todo esse afã serve afinal para demonstrar que os direitos humanos não são exclusividade de nenhuma época, de nenhum lugar e nenhuma cultura.
Contudo o grande reconhecimento a fazer-se pelo menos para os tributários de uma filosofia de vida judaico-cristão é que o fundamento mais pertinente para a sistematização dos direitos humanos encontra os seus alicerces na Grécia antiga, com a síntese formidável realizada por Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas” e ainda na conceção aristotélica do direito natural como um direito resultante da natureza das coisas e do qual a lei ditada numa determinada sociedade não é senão a materialização e o complemento, e que entende que a primazia cabe ao que “deve ser” e não ao que “é”.
Contudo, quer na Grécia antiga quer nos tempos imemoriais das civilizações africanas e asiáticas encontrávamo-nos perante formações sociopolíticas que admitiam a subordinação fundada nos acasos do nascimento e na sub-hominização, sendo a escravatura a sua expressão mais abominável. Daí uma certa crítica de que não se poderia encontrar a origem dos direitos em sociedades que violavam os dois fundamentos essenciais desses direitos que são a liberdade e a igualdade. Essa crítica meritória permite-nos demonstrar o caráter absoluto e universal que os direitos humanos assumem nos nossos dias.
É que as lutas conduzidas contra a tirania, o despotismo a opressão pelos profetas a que atrás me referi já eram lutas pelos direitos humanos. Simplesmente tratava-se de lutas que visavam apenas alguns direitos e algumas camadas das populações mas, por isso mesmo, elas não deixam de ser fases mais remotas desta luta que nos nossos dias, ao estender-se a todos os seres humanos e a todos os direitos, assume a sua dimensão absoluta e universal, sobretudo no campo conceptual.
O primeiro instrumento jurídico da nossa era(d.C.) cristalizando os direitos invocados a favor dos humanos aparece na Inglaterra em 1215 com a Magna Carta Libertatis. A partir de então e a medida que triunfavam revoluções e conceções filosóficas de raiz libertária e igualitária nasceram a Bill of Right da Virgínia no século XVIII e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, saída da Revolução Francesa de 1789, de que cabe realçar a participação da jornalista e escritora Olympe de Gugges, combatente pelos direitos da mulher, dos negros, contra a escravatura e que foi morta pela guilhotina, por ter escrito a Declaração Alternativa dos Direitos da Mulher e da Cidadã.
Esses textos consagravam essencialmente direitos civis e políticos.
No século XX com as ideias socialistas a Revolução de Outubro de 1917 e a Revolução Mexicana introduziram uma nova dimensão nos direitos humanos com os direitos económicos, sociais e culturais.
Aos princípios fundamentais da Liberdade e da Igualdade veio juntar-se o da solidariedade que gera os direitos da solidariedade.
É evidente que este universalismo não exclui antes pressupõe a existência de especificidades regionais. Cada sociedade desenvolve a sua própria visão do mundo e dos homens e a cada cultura corresponde um sistema de valores, formando assim uma conceção dos direitos humanos ligada à história, à geografia, aos costumes e a forma de pensar das populações.
Isto origina algumas especificidades em cada sistema.
Cada vez mais a par dos instrumentos jurídicos internacionais são adotados também um número importante de instrumentos jurídicos regionais destinados a cobrir determinadas matérias onde as especificidades são mais marcantes.
O universalismo a que nos vimos referindo não é portanto monolítico, redutor e uniformizante. É o universalismo que pressupõe diversidades resultantes das várias geografias humanas que caracterizam o mundo atual.
É interessante notar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos data de 1948 e em 1950 era assinada em Roma a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, tendo a Convenção Interamericana sido assinada em 1969 e a Carta Africana dos Direitos do Homem dos Povos sido aprovada em 1981 na Cimeira de Nairobi.
A evolução dos direitos humanos tem sido feita no sentido da indissociabilidade de todos os direitos, sendo a Carta Africana dos Direitos do Homem dos Povos ótimo exemplo desta tendência globalizante ao reconhecer no seu preâmbulo que os direitos fundamentais do ser humano são atributos da pessoa humana o que justifica a sua proteção internacional e que o gozo dos direitos e liberdades implica o cumprimento dos deveres de cada um.
Declara ainda ser essencial dar uma atenção particular ao direito ao desenvolvimento, e que os direitos civis e políticos são indissociáveis dos direitos económicos, sociais e culturais tanto na sua Concepção como na sua realização.
Contudo se afirmo sem hesitação o valor absoluto e universal dos direitos humanos a verdade é que na vertente da sua aplicação, este universalismo é extremamente claudicante.
A Europa já conseguiu pôr de pé um sistema de defesa dos direitos do indivíduo com controlo tanto político como jurisdicional bastante eficaz. O continente americano possui também um sistema de controlo não só político como judiciário relativamente operante. Em África a via do controle jurisdicional está atualmente a ser implementada com a criação do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.
Mas pensamos que também neste plano o futuro aponta para o controle jurisdicional a nível universal, criando mecanismos para que os direitos universalmente declarados possam ser universalmente aplicados. Já existe o Tribunal Penal Internacional mas ainda é muito claudicante.
Estamos já no século XXI no terceiro milénio mas o mundo continua com sérios problemas. Muitas são as catástrofes que ameaçam a sobrevivência da humanidade como seja o flagelo das epidemias, as guerras e as catástrofes naturais.
Este é um quadro sem dúvida desolador que apresenta o planeta que habitamos e destaca-se nele os verdadeiros condenados da terra no dizer impressivo de Franz Fanon, os que vivem na África subsaariana, uma África em que os habitantes e governantes ainda não conseguiram, em muitas regiões, fazer sair do círculo infernal das guerras e conflitos internos, dos golpes de estado, da má governação, a corrupção, da fome da miséria, das doenças que constituem fonte permanente de violações massivas e sistemáticas dos direitos humanos.
Que fazer é a pergunta que nos colocamos não só com ativista e defensora dos direitos mas também como cidadã minimamente empenhada na construção de um mundo onde todos os seres humanos possam viver com dignidade.
Que fazer face ao genocídio que está a acontecer na Faixa de Gaza, à desumana agressão à Ucrânia e a guerra persistente no Sudão e no Corno de África. Que fazer para que cada cidadão do mundo possa gozar de liberdade, Justiça, paz e bem-estar?
Que fazer para que cada País possa assegurar respeito efetivo dos direitos e liberdades fundamentais?
Que fazer face a aceleração das mudanças climáticas a que vimos assistindo com o seu cortejo de desastres ambientais?
Que fazer para que não existam no mundo tantos tráficos, tantas populações deslocadas e refugiadas e tantas pessoas mutiladas de guerra, asiladas, exilados, presas políticas e tantos imigrantes a morrerem em tantos mares?
Que fazer face governos incompetentes e corruptos que em vez de promoverem o desenvolvimento dos seus países abusam do poder para enriquecimento Ilícito de alguns? Como pôr fim a tantas guerras, conflitos e confrontos que assolam o mundo e que apenas servem para trazer a fome, a miséria, o horror às populações e riqueza aos senhores da guerra?
Que fazer com tantas crianças utilizadas e vítimas da guerra, maltratadas, abusadas sexualmente, mutiladas, raptadas, abandonadas?
Que fazer para que as meninas e mulheres possam efetivamente usufruir da igualdade de direitos e oportunidades consagradas na lei?
E, de uma forma mais ligada à nossa terra pois tem essencialmente a ver com o respeito pelos direitos económicos e sociais, eu poderia continuar a elencar as questões que nos preocupam. Que fazer para pôr fim a violência doméstica que continua a assolar meninas e mulheres caboverdianas e em todo o mundo num total desrespeito pelos direitos mais elementares da pessoa humana?
Que fazer face à violação de menores, à delinquência juvenil?
Que fazer face à irresponsabilidade paternal tão negativo na vida das crianças?
Que fazer face ao consumo de drogas cada vez mais disseminada nas camadas jovens e o seu cortejo de miséria, sofrimento e infelicidade?
Que fazer face ao consumo abusivo do álcool nas nossas populações?
Na nossa modesta óptica estes são os principais desafios com que a contemporaneidade interpela a humanidade e consequentemente aos defensores dos direitos humanos das mais diversas geografias.
O Estado caboverdiano colocou o respeito pelos direitos humanos na sua Lei Magna e os sucessivos governos tem procurado implementar a observância desses direitos.
Cabo Verde é um país que goza de boa reputação no plano internacional, nomeadamente em matéria da observância dos direitos.
Os sucessivos relatórios que anualmente se publicam espelhando a situação desses mesmos direitos no mundo colocam o nosso país em situação de algum conforto.
Sobretudo se tivermos em atenção o que se passa no nosso amado continente africano em que ocupamos sistematicamente os lugares cimeiros.
Sabemos, contudo, que entre nós existe ainda situações que exigem extrema atenção de todos os que se preocupam com a observância dos direitos. E sabemos que as tentações hegemónicas pelo que há que manter um escrutínio permanente.
Por isso gostaria de terminar esta minha intervenção, exortando a todos que adiram de alguma forma a esta nobre causo de defesa dos direitos humanos.
Temos no nosso país várias organizações que militam a favor das mais diversas causas, em prol da defesa do ambiente, das crianças, das mulheres, das pessoas com deficiência, que precisam sempre da adesão e do apoio dos que sentirem o chamamento. Entre elas começaria exatamente pela nossa CNHC que completa orgulhosos 20 anos de existência e muitas conquistas, mas também o ICCA, ICIEG, as Aldeias SOS, a ACRIDES, a Acarinhar, a Infância Feliz, a ADAD, para só citar algumas.
É necessário fazer um autêntico corte epistemológico com algumas práticas obsoletas que decorrem do nosso passado colonial, escravocrata, patriarcalista, que etiquetava as pessoas consoante a sua origem, classe, fortuna, gênero, cor de pele, formação académica, entre outros.
Direitos humanos “Todos para Todos” é o mais fino combate à exclusão que hoje podemos fazer.
Este slogan vem-se ouvindo urbi et orbi desde as comemorações do septuagésimo aniversário da Declaração Universal e eu acredito firmemente que a defesa destes direitos constitui a nova mística que deve orientar a ação dos homens e mulheres de boa vontade e que acreditam que a salvação da humanidade só poderá ser feita com a humanidade por inteiro e sobretudo com a salvação do planeta.