Assim termina Simon Jenkins a sua obra A Short history of Europe. From Pericles to Putin (2018), identificando, através do possessivo, o próprio historiador, a sua síntese e a Europa representada no ciclo que teve a sua “alvorada” no mar Egeu:

My story began with a bull. It ends with a lion. Outside the gates of the Arsenal in Venice stands a marble beast, symbol of the city that once commanded Europe’s greatest commercial empire. It was carved in the fourth century BC and looted from Piraeus in Greece by a seventeenth-century Venetian, Francesco Morosini, who also blew up the Parthenon. The lion sits on its haunches with strange characters scratched into its surface. For centuries they were a mystery, but they have recently been deciphered as eleventh-century Norse runes, by one ‘Asmund’ on the orders of ‘Harold the Tall’. Harold was a Viking mercenary employed by the emperors of Constantinople.

The story of the Piraeus lion thus encircles Europe. It embraces the temples of Athens and the fjords of Scandinavia, the walls of Byzantium and the merchants of Venice. It bids us free ourselves from our own place in history and see the past as a distant land, one through which we must travel with eyes and minds open, free of preconception and hindsight but aware of the constant interconnectedness of events. At the end of this journey, I see the themes I noted at the start as vivid as ever. Geography remains godparent to Europe’s history.

I have travelled the length and breadth of Europe. I have journeyed from Portugal’s Algarve to the quaysides of St Petersburg,/…/ And I can sense the ghosts of the past, gazing down on them as from a Tiepolo ceiling. I see Augustus and Charlemagne, Charles V and Catherine the Great, Talleyrand and Bismarck, nodding in recognition of today’s continent. But I hear them say to each other, ‘How familiar–and how very fragile.’ Then I glimpse the Piraeus lion, who has seen it all before, and he gives me an enigmatic smile.1

Uma viagem entre dois PP: Péricles (461-429) e Putin (n. 1952). Ao espelho um do outro? Na Oração Fúnebre de Péricles, Tucídides atribui-lhe a afirmação “nós forçámos todos os mares e terras a serem estrada para a nossa ousadia, e em todo lugar, seja para o mal ou para o bem, deixámos monumentos imperecíveis atrás de nós." (História da Guerra do Peloponeso, II, 41). Na de Putin, teremos de assinalar que ele destruiu, sistematicamente, os monumentos ucranianos e os de outros povos que invadiu.

No “sorriso enigmático” com que conclui a sua viagem histórica, solidarizando-se com Cícero, Jenkins funde o animal2 e o humano (Gioconda/Mona Lisa, 1503), mas também o símbolo régio e o mistérico (a Esfinge egípcia que nos observa do outro lado do espelho das águas e a lendária grega vencida por Édipo), sobreimprimindo escultura, pintura, heráldica e esoterismo. E o enigma desse sorriso antigo anuncia a boca aberta de espanto e horror (O Grito, 1893, de Munch) com que o século XX se abre e que a penúltima imagem do livro, de Putin-czar (2018), fotografado de um nível inferior (técnica de Leni Riefenstahl), coroado por 3 imensos lustres e aplaudido por duas alas de cortesãos, parece congelar numa entrada consagratória de novo ciclo.

O Anjo da História (Walter Benjamin a partir do Angelus Novus, 1920, de Paul Klee de Simon Jenkins convoca, assim, Clio e as suas irmãs3 num novo Museion, o da sua Europa, substituindo Apolo nas contradanças de roda (Dança das Musas, 1514-23, de Baldassare Peruzzi), acompanhadas pelo “coro grego” dos seus grandes intelectuais, como afirma na introdução da obra.

Avançando para a boca de cena, o oráculo da Sibila-Jenkins-compère, solidarizado com Cícero (v. Introdução) apenas comenta, por fim: “Parece que a Europa nunca aprende.”… Assim se explica que a narrativa oscile na tangencialidade dos diferentes modos discursivos, beirando a épica, a tragédia e a lírica, ode afectuosa, emocionada, de um seduzido europeu…

Mas regressemos ao enigma e observemos algumas perplexidades em que ele assenta agora, em 10 de Junho de 2022 (cada dia, hora ou minuto pode desactualizar as próximas observações).

Do lado do invasor, "uma charada envolta num mistério dentro de um enigma" (Churchill, 1939), alguns indicadores:

  • na sequência da visita a uma exposição dedicada ao 350.º aniversário de Pedro, o Grande, Putin proclama a sua identificação com o seu projecto expansionista e militar desse czar e com o mais alargado mapa da Rússia, depois de anos a declarar o colapso da União Soviética como “a maior catástrofe geopolítica do século” (25/4/2005), avançando com a anexação da Crimeia (2014) como o mais claro sinal de início de um ‘regresso ao futuro’ do grande império russo;

  • o aliado de Vladimir Putin e antigo presidente da Rússia, Dmitry Medvedev, anunciou que o objetivo de Moscovo é construir, finalmente, "uma Eurásia aberta entre Lisboa e Vladivostok", concluindo com uma declaração generalizada de ódio a todos os críticos da Rússia de Putin4;

  • na assumpção do projecto de genocídio do povo ucraniano, embebe-se o fantasma do já perpetrado Holodomor (1932-33). Na destruição geral, percebe-se o objectivo da ‘terra queimada’ aspirando a não deixar vestígios de quem a habitou, do ‘génio do lugar’;

  • na deslocação de populações, processo estalinista, torna-se óbvia a estratégia de assimilação de ‘lotes’ de sobreviventes (nova escravatura).

Do lado do Ocidente:

  • Angela Merkel, com 16 anos de liderança (Alemanha, Europa), confessou em entrevista de 8/6/2022, ter sempre tido conhecimento da vontade de Putin de “destruir a Europa”. Apesar disso e dos avisos sobre isso, entregou-a de bandeja ao poder russo através do projeto de gasoduto Nord Stream 2;

  • os líderes ocidentais desfilam em visitas à Ucrânia, reafirmando a sua solidariedade e identificação com ela e o seu horror face ao que designam como “crimes contra a humanidade”, “crimes de guerra”, “genocídio”, etc., enquanto Zelensky ora-conferencia, sucessivamente, por inúmeros parlamentos dos seus visitantes. Apesar disso, esses mesmos líderes ocidentais aliados só fornecem armas que não possam atingir a Rússia ou que a Ucrânia prometa não usar para isso, mesmo que os alvos sejam os lugares de origem dos mísseis que os massacram.

No tabuleiro de xadrez assim desenhado, a invasão da Rússia continua e reforça-se, a destruição da Ucrânia expande-se e todos se sentem congelados por uma reiterada ameaça russa de “nuclearização” e de “expansão” da guerra.

Nas margens do cenário de guerra, fazem-se exercícios no Báltico, especula-se sobre a doença de Putin (o eterno recurso da impotência e da desresponsabilização face a todos os tiranos ao longo a história) e sobre a possibilidade da sua deposição ou assassinato, imaginam-se, à exaustão, as sanções à Rússia, mas evitando, quanto possível, prejuízos, multiplicam-se telefonemas a Putin cujo relato apenas consagra o que favorece quem os faz…

O “sorriso enigmático” do leão, de Mona Lisa e de outros abre-se no O interrogativo do absurdo:

  • “Se /…/ Merkel sempre soube que a Rússia preparava uma guerra e que o objetivo do [Presidente russo, Vladimir] Putin é destruir a União Europeia, então por que construir o Nord Stream 2?” (Mikhaïlo Podoliak, conselheiro da Presidência da República ucraniana, no Twitter)?

  • Reconhecendo o Ocidente a desumanidade da guerra em curso e acompanhando-a, diariamente, como pode enviar apenas o que não possa atingir o território de onde parte a agressão?

  • Reafirmando os “crimes contra a humanidade” da invasão e a sua defesa da vítima, como pode o ocidente desejar premiar o invasor com uma negociação que “não o humilhe” e que seja lesiva do invadido e massacrado?

Como na tradição pictórica das alegorias5, parece sair um filactério convulso da boca aberta em espanto:

Se é verdade que a Rússia é o país com mais armamento nuclear, também parece óbvio que a NATO, no seu conjunto, tem muito mais.6 Assim, porque não se inverte a chantagem antes que o Ocidente se divida por diferentes interesses, a Ucrânia deixe de existir e a Rússia avance como um Golem pela Europa fora: se ela, ameaça, for solidária e em uníssono, com as armas apontadas à Rússia?…

A interrogação contrasta com a habitual moralidade sentenciosa que informa as inscrições da maioria dos filactérios. Bastaria lembrar, n’O Triunfo das Virtudes (ou Minerva expulsa os Vícios do Jardim das Virtudes, 1502), de Andrea Mantegna, o que envolve a Árvore Antropomórfica à esquerda, representando a ninfa Dafne (cuja recusa do amor de Apolo a transformou em Árvore da Sabedoria, um loureiro), filactério que apresenta a mensagem em latim, grego e hebraico:

AGITE PELLIE SEDIBVS NOSTRIS FOEDA HAEC VICIORVM COELITVS E NOSSO RE DEVN TIVM DIVAE COMMITTEES. (Sê divino companheiro das virtudes, tu que voltaste do céu, expulsa das nossas esferas os abomináveis vícios manifestados).

Ao longe, ouve-se a Dança das Horas (Danza delle Ore) ballet da ópera La Gioconda (1876), de Amilcare Ponchielli, baseada em Ângelo, Tirano de Pádua, de Victor Hugo, que Walt Disney convocou na sua Fantasia (filme, 1940). Observando-se no espelho das águas que Edward Burne-Jones ofereceu a Vénus (O espelho de Vénus, 1875), as Musas vertem-se n’As Horas (1882) do mesmo autor, animando-se e entregando-se à Dança do tempo (pintada por Nicolas Poussin em1638 ou por Eliseu Visconti em 1908, no teto do Teatro Municipal do Rio de Janeiro)… afinal, arrastando a evocação da "Dance Me to the End Of Love" (1984), de Leonard Cohen, canção de amor e tragédia inspirada no holocausto7. Apenas o tempo responderá à pergunta do filactério contorcionado em arabesco numa Europa sem a Flauta Mágica

Referências

1 Cf Inscrições e tentativas de tradução das mesmas.
2 Na verdade, o leão de Pireu é um dos 4 (estátuas) que dominam o Arsenal de Veneza: em 1692, um sentado (o de Pireu) e outro deitado, espólios de guerra de Morosini, foram colocados ao lado do terraço, sendo o leão deitado oriundo da strada Lepsina , entre Atenas e Elêusis; o terceiro leão, também sentado, veio de Delos em 1716, após a resistência vitoriosa ao cerco turco à fortaleza de Corfu; o quarto leão, junto ao canal, resulta da montagem de duas esculturas de origem desconhecida. Quanto ao que simboliza Veneza, leão alado de bronze no topo de uma coluna na Piazzetta, junto à Praça de São Marcos, tem a sua origem perdida nas brumas da história (China, Índia, Etrúria, Assíria, Báctria, Império Sassânida ou, como os Cavalos de São Marcos, saqueados de Constantinopla em 1204?).
3 Calíope (Poesia Épica), Clio (História), Erato (Poesia Lírica), Euterpe (Música), Melpómene (Tragédia), Polímnia (Música Cerimonial), Tália (Comédia), Terpsícore (Dança) e Urânia (Astronomia e Astrologia).
4 É também Dmitri Medvedev que, na campanha para as eleições de 2006 (para substituir Putin temporariamente) reafirma a posição de Alexandre I em 1821: “Estou profundamente convencido de que, se a Rússia se tornar numa república parlamentar deixará depressa de existir. A Rússia precisa é de uma forte autoridade presidencial. Estas terras foram reunidas ao longo de séculos e é simplesmente impossível governá-las de outra maneira”.
5 O Triunfo das Virtudes (ou Minerva expulsa os Vícios do Jardim das Virtudes, 1502), de Andrea Mantegna.
6 Cf. Guerra nuclear e Armas nucleares.
7 Cohen esclareceu a respeito numa entrevista de 1995: “’Dance me to your beauty with a burning violin’… it's curious how songs begin because the origin of the song, every song, has a kind of grain or seed that somebody hands you or the world hands you and that's why the process is so mysterious about writing a song. But that came from just hearing or reading or knowing that in the death camps, beside the crematoria, in certain of the death camps, a string quartet was pressed into performance while this horror was going on, those were the people whose fate was this horror also. And they would be playing classical music while their fellow prisoners were being killed and burnt. So, that music, ‘Dance me to your beauty with a burning violin,’ meaning the beauty thereof being the consummation of life, the end of this existence and of the passionate element in that consummation. But, it is the same language that we use for surrender to the beloved, so that the song — it’s not important that anybody knows the genesis of it, because if the language comes from that passionate resource, it will be able to embrace all passionate activity.”