Vivenciar as mediações como absolutos, sem consciência da provisoriedade e do perspetivismo que as constitui, contribui para o empobrecimento das mesmas e para a frustração dos sujeitos que as protagonizam. Reflito desde a Escola [como conceito, mas sempre situada em circunstâncias múltiplas], mas creio que o mesmo se pode dizer de quaisquer experiências associativas de pessoas, com incidência naquelas que têm um forte impacto público, onde os partidos políticos e as igrejas podem ser pensados como paradigmas.
Ninguém duvidará que o ‘estado a que chegámos’ resulta de escolhas estruturantes [ou da sua ausência, que é um modo outro de escolher], tudo menos neutras, e que, em alguns casos, não merecem menos do que oposição clara, inteligente, alternativa. Ainda assim, o ‘menino’ não é a ‘água do banho’, nem a ‘floresta’ a ‘árvore’.
Nesse sentido, do lado das ‘gestões’, alguma ‘esquizofrenia imediatista’, que quer fazer de cada novo começo um ‘ponto zero’ sem história passada, desemboca habitualmente num dilúvio autodestrutivo. Urgem, como nunca, a presença de ‘adultos na sala’, de ideias claras, firmes, mas porosos à cultura da negociação, tendo como substância e finalidade do diálogo a noção de que o todo é mais importante que a soma das partes e o bem comum superior ao bem individual. O inverso disso será a insanável competição de egos, a digladiarem-se pelo insaciável granjear de simpatias geradoras de conforto.
Do lado dos ‘soldados rasos’, lamento não ter melhor nomenclatura dicotómica - mas refiro-me aos professores, onde me incluo e a partir de onde construo este meu ‘lugar de fala’ - creio que se joga alguma (no mínimo) necessidade de reconsideração vocacional, que reconfigure a nossa identidade, a recontextualize num espaço e tempo novos e em mutação célere e a reconstrua num horizonte cultural amplo, superador da tendência ‘manualística’ formatada no/para o cumprimento ‘competente’ e formal (com conteúdo real?) de um determinado programa.
Esta proposta de posicionamento implica a adesão a um ‘conceito concreto’ de Escola, não absoluto, dinâmico, negociado, acomodado contextualmente. Aberto ao que vem de fora, interagir com a proposta que ‘leva a jogo’. O contrário disto concretiza-se na repetição plagiada e preguiçosa de regras superiormente debitadas ou modelos repetidamente rotulados de ultrapassados. Carecemos de um mínimo de comunhão em princípios subjacentes, angulares, que não diluam ou esmoreçam riquezas de matriz muito pessoal. Para que ser em Escola e não habitar apenas a escola, mais abstrata ou mais concreta. Passaremos, deste modo, da ideia de espaço à noção de lugar.
Demasiado teórico? Talvez. Concretizemos um pouco mais…
Evidentemente que o que fica dito, tem de se colocar em ato a par com o digno reconhecimento da profissão docente, quer no discurso filo-sócio-político, quer na valorização material pragmática desse trabalho inegociável para a construção de uma sociedade humana digna desse nome. No fundo, falamos sempre de financiamento, mas é tão pobre, inculta e pouco criativa a discussão que se encerra aí. No dia que se encerrar a torrente europeia, como sobreviveremos?
Desçamos um pouco mais ainda à realidade…
Onde discutem os professores, entre pares e com alunos, os livros que andam a ler, os filmes que viram, os discos que rodam em loop nos seus dispositivos, os concertos, as exposições, os teatros, os hobbies (…)? Podemos perguntar por espaços e tempos reais e cronológicos, mas creio ser preciso indagar, sobretudo, espaços e tempos interiores e afetivos. E, sobretudo, convicções e resiliência para a sua operacionalização. Questionemos mais aprofundadamente…
Pode haver aprendizagem sem estas dimensões ou reduzindo-as a momentos comemorativos desgarrados? Como cansam os intermináveis ‘dias de’ (tudo e mais alguma coisa)!
A Escola (teórica, partidária-jurídica), como dimanação, ‘de cima para baixo’, de uma política de ‘técnicos-gestores da coisa pública’ transformou-se num ‘Fim em si mesma’, dogmática, a iludir o seu caráter de meio provisório. Com isto, enfraqueceu, por um lado, o seu caráter criativo culturalmente situado numa geografia, em nome de um unanimismo de coesão nacional disfarçado de justiça social. Por outro, subalternizou a sua dimensão de ‘comunidade-projeto’, para se converter num organigrama legal, que parece ter a perfetibilidade jurídica da estrutura como auto-defensiva conclusão perseguida e não como premissa ou metodologia, tendo a aprendizagem como horizonte último.
Esta avaliação, tal como está desenhada enquanto ‘câmara de tortura’, nos pressupostos, nos métodos e nos fins, talvez seja, a par das fotografias dos rankings e do cumprimento ‘juridiquês’ das normas by the book, o maior limite da criatividade e a grande contribuição para a desumanização do espaço escolar. Daí ao desalento dos ‘protagonistas-funcionários-estritos cumpridores’, o salto é curto, salvaguardando-se uma ‘competência formal’ descomprometida. Pelo que, resulta daqui a necessidade de passar do paradigma de escola ‘teórica-partidária-jurídica’, para uma escola ‘conceito criativo-política-comunidade-projeto’.
Garantir protagonistas comprometidos será a primeira arte de quem gere. Deixar-se comprometer, a primeira tarefa de quem é co-laborador. Com implicação concreta e consequente. Desta relação de confiança leal e recíproca, levado ao limite do possível, brotará aquilo que os indicadores métricos medem como sucesso e que não é mais que cultura ampliada, inteligência exercitada e autonomia experienciada de sujeitos humanos, que são o presente e serão o futuro. Assim ou de outra maneira. Melhor ou pior. Mas com responsabilidade nossa.