Nos dias que correm, é impossível ficar indiferente à colossal tragédia que está a acontecer. No início de Fevereiro, milhões de pessoas viviam a sua vida, levavam os seus filhos à escola, iam jantar fora, viam séries da Netflix à noite. No fim de Fevereiro, essas mesmas pessoas (milhões de pessoas!) dividiram-se, ficando algumas a resistir e a morrer numa guerra sem sentido (como todas as guerras), partindo outras para salvar os seus filhos, largando o seu lar e a sua vida tal como a conheciam. Trata-se de uma situação totalmente impossível de perceber por quem não passe por ela. O absurdo da guerra invade os olhos e a mente de todos, com irracionalidade dantesca, morte, estigmatização, injustiça gritante, desespero, doença, fome, frio, destruição, mentira, desrespeito por passado, presente e futuro. A isto juntam-se particularidades modernas como o pairar da destruição nuclear e o total contrassenso de, após se ter lutado estoicamente pela vida contra uma situação pandémica, se optar por matar mulheres, homens e crianças através de armas. Não há a menor dúvida de que, quanto a mortandade, os seres humanos são muito mais letais do que vírus.

A causa não é tão complexa como se apregoa, sendo uma consequência da natureza humana. Todos os dias em que o ser humano esteve presente no planeta houve centenas de milhar de fanáticos completamente certos das suas ideias, totalmente focados em si mesmos e incapazes de abraçar ideias, visões e necessidades de outros. O matemático e filósofo Bertrand Russell (1872-1970) traduziu a ideia de forma eloquente:

The whole problem with the world Is that fools and fanatics are so certain of themselves and wiser people so full of doubts.

Dessas centenas de milhar, houve em todas as épocas muitos que tiveram poder. Nos dias que correm, em todas as gerações há um ou outro que é ditador com poder totalitário e potencial de destruição nuclear. Infelizmente, há aqui um fado estatístico: em algum momento alguém com este perfil usará esse potencial. A dimensão nuclear já está a ser usada em abstracto, como ameaça. Em algum momento, alguém usará o potencial em concreto, destruindo-se a si próprio e destruindo todos os demais. Havendo ditaduras com este potencial destrutivo totalmente centradas em um ou dois indivíduos, situações trágicas são apenas uma inevitabilidade estatística. Essa é a razão para a democracia e a liberdade serem tão vitais; são a única forma de se garantir alguma protecção contra este tipo de situação devastadora.

Há a tendência para discutir a questão no plano moral, estando as democracias liberais do «lado dos bons». Mas, a questão parece ser ainda mais visceral e pragmática do que essa: o conceito democrático e a liberdade parecem ser as únicas formas até agora inventadas de lidar com o potencial destrutivo, egoísta, totalitário e destrutivo da natureza humana. Esse potencial não desaparece, coisa que é impossível no mundo real, mas é diluído.

Estando feito este preâmbulo, e esquecendo o seu carácter sombrio, aborde-se agora o tema principal deste texto. Procurando contribuir para a onda solidária de resistência à invasão, escolheu-se uma personalidade notável ucraniana. Procurou-se também juntar uma personalidade russa resistente, uma vez que também as há aos milhares. Quanto à escolha da personalidade ucraniana, pensou-se num matemático ou num jogador de xadrez. Entre muitas possibilidades para matemáticos, uma interessante seria Vladimir Arnold (1937 - 2010), até pelo seu pensamento relativo ao ensino da disciplina. Quanto a xadrezistas, a escolha inequívoca é Vasyl Ivanchuk (1969-). Trata-se de um génio xadrezístico como houve poucos. Detentor de uma memória fotográfica, um estilo imaginativo versátil, uma técnica impecável e grande espírito de luta, foi sempre um dos jogadores que o famoso campeão mundial Garry Kasparov (1963-) mais receou. Ivanchuk é considerado quase unanimemente o mais forte xadrezista que não foi campeão mundial. Embora não o tenha sido, ganhou inúmeras provas importantíssimas. Uma delas Linares 91, que será objecto deste texto. Entre a matemática e o xadrez, preferiu-se falar de Ivanchuk por uma única razão, a existência de uma incrível vitória sua contra Garry Kasparov. Esse jogo de xadrez, sendo uma belíssima obra-prima, está carregado de tal simbolismo relativo à situação actual, que justificou a escolha para este texto.

Fevereiro deste ano ficará na História pelos mais terríveis motivos. Se se quiser atribuir um dia específico à invasão russa, esse dia talvez seja 23 de Fevereiro de 2022. Há vários dias determinantes. No dia 21 de Fevereiro, Vladimir Putin (1952-) reconheceu a República Popular de Donetsk e a República Popular de Luhansk. No dia 22 de Fevereiro, o Conselho da Federação da Rússia autorizou o uso da força militar e as tropas russas a entraram. Mas foi no dia 23 de Fevereiro que a Ucrânia anunciou o estado de emergência nacional.

Recuando quase 30 anos, ao dia 23 de Fevereiro de 1991, na primeira ronda do prestigiado Torneio de Linares, aconteceu, não uma coisa horrível, mas algo de rara beleza. Vasyl Ivanchuk bateu Garry Kasparov num jogo que todos os jogadores de xadrez com certa idade conhecem perfeitamente, de tal forma foi marcante. Trata-se de um clássico da história do xadrez.

Este jogo, entre um xadrezista ucraniano e um xadrezista russo, tem um simbolismo que quase parece premonitório. Em primeiro lugar, à época, Garry Kasparov era quase invencível, tendo uma máquina de preparação muitíssimo mais apurada do que qualquer outro jogador do mundo, um pouco à semelhança da disparidade entre exércitos ucraniano e russo na situação bélica actual. Ainda assim, com uma criatividade desarmante, Ivanchuk levou a melhor. Por outro lado, a posição final é provavelmente única em toda a carreira profissional de Kasparov: todas as suas «tropas recuaram à linha de partida». Uma das razões para a fama deste jogo é esse recuo raro e surpreendente. A maioria dos nossos concidadãos torce por isso: uma solução criativa que faça as tropas russas recuar, mudando o estado de guerra para um estado de paz. Já não há soluções: o terrível está aí e já não pode voltar atrás. Mas é preciso fazer com que o terrível não se torne ainda muitíssimo pior, possibilidade que não está nada fora de hipótese.

Há outros elementos que juntam ainda mais simbolismo a este jogo de xadrez. Kasparov tem sido sempre um grande opositor de Putin, residindo actualmente fora da Rússia. Tem partilhado visões muito sombrias quanto ao que se está a passar actualmente (ver aqui e aqui). Sendo autor do interessante livro «A Vida Imita o Xadrez» (motivação para o título deste artigo), é alguém que genuinamente deseja que a vida imite esta sua derrota e que as tropas voltem à linha de onde partiram. À resistência heroica do povo ucraniano, é desejável que se junte a resistência do povo russo. Não se trata de uma mera guerra no xadrez internacional, trata-se realmente de uma guerra fundamental pela liberdade. E essa resistência russa já sucede dentro de portas, mesmo havendo um terrível mecanismo opressor. Também essa resistência interna é de uma heroicidade comovente. Não se deve confundir os russos com Putin, tal como não se deve confundir os alemães com o Hitler; um dos males mais terríveis e injustos decorrentes de qualquer guerra é a estigmatização.

A cultura russa, tal como a ucraniana é riquíssima. Literatura, música, artes plásticas, ciência, etc., dispensam palavras. A tudo isso, junta-se o xadrez, objecto intelectual, artístico e desportivo de rara sofisticação e beleza, caro a russos e a ucranianos. Ainda que com naturais excepções, o xadrez tem sido palco ao longo dos tempos de partilha de ideias, combates leais, respeito por adversários. Veja-se como o próprio Kasparov citou a sua derrota.

Um cidadão ucraniano deve poder analisar e usufruir de jogos como este na sua vida. Fará análises disparatadas e terá pensamentos absurdos, quando comparados com os de Ivanchuk e de Kasparov (ver a análise de Ivanchuk aqui). Nessa vertente será provavelmente muito inferior e incompetente. Mas deve poder fazê-lo em total liberdade, essa sim completamente plena e igual à deles e à de todos. O que não deve é ter de ver a destruição da sua vida jogada numa espécie de jogo de xadrez doentio, praticado contra a sua vontade por fools and fanatics, certain of themselves.

Para quem saiba um pouco de xadrez, a imagem seguinte mostra 4 momentos empolgantes: (1) a posição anterior à interessantíssima ruptura 23.c5!?; (2) a posição anterior ao fortíssimo lance ofensivo 29.g4!; (3) a posição anterior ao asfixiante 35. Tg4!; (4) a incrível posição final.


Bacilles