Penso que, pelas imagens, pelos cheiros, pelos sabores, pelas histórias, retornamos ao passado. E, quando o passado se torna objeto de investigação, sem perder de vista as lentes do futuro, renasce assim uma pessoa curiosa pela cultura popular. Um tanto desconfiada com os detalhes existentes na comunidade doméstica pela dimensão do sagrado, o folclorista não escolhe ser, mas, é escolhido pela sua atuação no folclore.

Embora, não seja simples, é da vida simples que os folcloristas se apoiam para montar um repertório de memórias. Desde pequeno se encantam com os costumes, crenças, manifestações populares, alimentação, quermesses, festas juninas, carnaval, ciclo natalino, ou seja, tudo que vem do povo e para o povo. Tudo que é do povo faz alarde no coração do folclorista. Não há ensaio, o folclorista tem uma veia na fenomenologia com pauta nas classes sociais. Há de se considerar que exista um sentimento pelo sagrado, um deslumbramento pelos mistérios existentes entre o céu e a terra nas vivências de ritos e rituais dos povos do mundo.

Digamos que os folcloristas sejam pesquisadores de fragmentos do imaginário popular existentes no cotidiano das pessoas, que criam e recriam maneiras de sobrevivências. Por sua vez, são bastante criticados, porque fazem a ponte com a sociedade pelas narrativas e manifestações dos fazedores da cultura ou brincantes. Nenhum folclorista se faz sozinho, ele é fruto da vastidão dos modos de vida das pessoas e sua relação com o divino. O escritor Cícero Belmar diz” ...Ouvimos almas, todas têm obsessão pelo passado.” Será que os folcloristas são como as almas?

Acreditamos que haja um pouco dessa obsessão, mas há também a chama do presente e uma enorme antena para o futuro. É o que a escritora Olga Tokarczuk diz, “o tempo, por sua vez, parece uma ferramenta simples para medir pequenas mudanças, uma régua escolar com escala simplificada de apenas três pontos: foi, é e será.”

O folclorista passeia no foi, é, e será pelo imaginário popular. Alguns dizem que é pelo exótico que fixamos nosso olhar, mas, na verdade é pelo mistério existente na simplicidade do imaginário popular, dos rituais e dos ritos do povo e para o povo. É do fantástico e surpreendente que estamos falando. As manifestações populares trazem na alma sempre algo surpreendente, e isso fascina os folcloristas.

Por volta dos anos 90, conheci um folclorista chamado Mário Souto Maior. Ele gostava de escrever sobre a alma do povo e para o povo. Pesquisou as curiosidades do nascimento de um nordestino com o livro – Como nasce um Cabra da Peste1, fez pesquisas sobre a cachaça, palavrões, o uso do coco na culinária nordestina, nomes próprios pouco comuns, plantas medicinais, ciclo junino e natalino e outras façanhas das manifestações populares. Fiquei encantada! Era realmente um folclorista, gostava de olhar o que outros não viam na cultura popular. Depois, conheci o professor Roberto Benjamin2 na Universidade Federal de Pernambuco – UFRPE, pesquisador do carnaval, ex-votos, folguedos e danças de Pernambuco. Foi presidente da Comissão Nacional de Folclore. Lutou na divulgação e registros dos acontecimentos das culturas populares pela Folkcomunicação3. A Folkcomunicação foi criada pelo jornalista Luiz Beltrão que ressalta o intercambio das mensagens que o povo recebe da mídia em seu dia a dia e faz uso em seu cotidiano. Como exemplo temos o aparecimento de ataques de tubarões na praia de Boa Viagem no Recife, Pernambuco sendo retratado no artesanato, nas camisas. Nomes dos personagens de novelas em estabelecimentos. Mamulengos inspirado nos personagens das novelas. Garrafa de água engarrafada com formato de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, Ceará. São muitos os exemplos. Os folcloristas buscam estabelecerem contatos entre o imaginário e vivências nas culturas populares. Há de se considerar, que a tecnologia e a mídia são pivôs de transformações nas culturas populares. Por isso, também se tornam objeto de estudos para os folcloristas. Temos o professor Oswaldo Trigueiro4 da Universidade Federal da Paraíba - UFPB, que estuda a dimensão midiática nas culturas populares. Mas, será que é cafona ser chamado de Folclorista nos tempos atuais?

Bem, os estudiosos do folclore não se consideram cafona nem exótico, mas amantes das culturas populares com projeto e missão. A missão dos folcloristas foi encabeçada pelo antropólogo Luís Rodolfo da Paixão Vilhena, um folclorista restaurador das pesquisas e registro do folclore para o universo acadêmico. O Movimento Folclórico Brasileiro fez rebuliço nas ciências socias dando surgimento a Comissão Nacional de Folclore (1947). E na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958) muitos pesquisadores trataram de organizar o Folclore.

Para tanto, devemos seguir o pensamento da Folclorista e professora Marlei Sigrist, “em vez de criticar os folcloristas, vamos olhar o que cada um fez de bom”. O universo da cultura popular é amplo, por isso, muitas dimensões são questionadas no mundo científico. Temos contribuições do folclorista Edson Carneiro5 que realizou estudos do samba brasileiro.

“No final dos anos 1940, foi criada na cidade do Rio de Janeiro, a Comissão Nacional de Folclore, seguindo orientações da UNESCO em um contexto pós-guerra, que indicava o conhecimento e a valorização das diferentes culturas como elemento capaz de promover uma convivência pacífica entre as nações e evitar a recorrência dos massacres realizados durante a Segunda Guerra Mundial, na qual um discurso de eugenia baseado na diferença de raças teria justificado o genocídio de milhares de pessoas. Por esse viés, a UNESCO, instituição criada pelo influxo do pós-guerra, patrocinou diversas ações que iriam na contramão do extermínio. A publicação de uma série de estudos sobre a diversidade cultural, dentre as quais se situa o trabalho de Lévi Strauss, Raça e História, publicado em 1952, foi uma delas, assim como a indicação de criação de comissões nacionais que se dedicassem ao estudo e divulgação dos aspectos culturais de suas respectivas nações. O Brasil foi o primeiro a seguir essa orientação e instalou em dezembro de 1947 a Comissão Nacional de Folclore. Renato Almeida, funcionário do Ministério das Relações Exteriores, folclorista baiano, referência, ao lado de Guilherme de Melo e Mário de Andrade, para os estudos sobre música brasileira, foi a figura central desse empreendimento. Almeida criou, a partir da Comissão Nacional, suas congêneres estaduais e, mais tarde, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, a rede de intelectuais que, no âmbito daquilo que o crítico literário Angel Rama denomina de cidade letrada (RAMA, 1985: 41-53), interpretou a cultura do povo, buscando - a partir de uma intensa mobilização tão política quanto intelectual - a institucionalização desse campo de estudos. Esta rede de intelectuais visava defender as manifestações folclóricas da ação corrosiva dos tempos modernos, apresentando-as à nação como o elemento característico de sua identidade. Os componentes dessa rede formaram o que o antropólogo Luís Rodolfo Vilhena denominou de movimento folclórico brasileiro (VILHENA, 1997: 28).6

Tantos folcloristas fizeram nomes com esse trabalho de grande valia, mas de pouca visibilidade e valor.

Os folcloristas acharam pouco e construíram a primeira Carta do Folclore Brasileiro7 em 1951 que no ano de 2021 ela fez 70 anos. A carta também fi atualizada em 1995, em Salvado, Bahia. Este ano de 2022, os folcloristas pertencentes à Comissão Nacional de Folclore tiveram o apoio do professor Romeu Sabará da Comissão Mineira de Folclore na organização de um manifesto por uma nova Carta do Folclore Brasileiro. O mundo mudou, com o avanço das tecnologias, as culturas populares se transformaram. Os folcloristas pelos limites epistemológicos custam a acreditar que muita coisa que foi escrita, deve ser reatualizada. Temos os bens culturais, o patrimônio imaterial que adornam nossas pesquisas.

Bem, mas como o folclorista atua? Sua prática é voltada para registro, documentação, etnografia, pesquisas, publicações, projetos na construção de uma identidade coletiva a partir da cultura do povo e para o povo. Para tanto, o advogado e folclorista Pereira da Costa que escreveu - Folk-lore pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, tinha um afeto ao retratar os costumes de sua região. Então, podemos dizer que os folcloristas possuem como características essências, o afeto, a vontade e a preocupação em pesquisar o misterioso mundo mágico das culturas populares. Resumindo, os folcloristas carregam no bolso, várias hipóteses, vários problemas de pesquisas oferecidos pela diversidade existente na cultura popular. Ou seja, é um pesquisador social. Sem esquecer, temos o médico alagoano Théo Brandão que em 1931 publicou - Folclore e educação infantil, onde não parou de coletar dados, que contribuíram com pesquisas e materiais do folclore alagoano8.

Há de se considerar que os estrangeiros também se apaixonaram pelo cenário cultural do Brasil. É o caso da antropóloga Katarina Real9 que ficou encantada com o carnaval do Recife, em Pernambuco. Debruçada no Maracatu nação Elefante de Olinda registrou Dona Santa, a rainha do Maracatu para o mundo. Arthur Ramos10 foi um provocador ao estudar a referência da matriz africana em seus estudos. O estudioso do folclore Sílvio Romero11 publicou Contos Populares do Brasil em 1885 que até hoje é uma referência. O grande Luís da Câmara Cascudo fez rebuliço com o Dicionário do Folclore Brasileiro entre outras publicações que ajudam a entender a vivência do povo do Brasil. Perdoe-me os folclorista não citados neste texto, mas, desde já agradeço à vontade e perspicácia em permanecer pesquisado sobre ritos e rituais que envolvem nossa cultura.

Hoje, a Comissão Nacional de Folclore é formada por vários folcloristas. Temos o presidente da Comissão Nacional professor Severino Vicente que vem organizando o XVIII Congresso de Folclore que ocorrerá no Estado do Maranhão em São Luís, na luta pela salvaguarda das imagens, religiosidade, documentação, registros e projetos do folclore brasileiro. Faz parte do universo dos folcloristas, folguedos, danças, crenças, musicas, loas, mitos, lendas, contos, história oral, narrativas, religiosidade, ritos, rituais, alimentação entre outras manifestações.

São inúmeras as contribuições dos folcloristas brasileiros, mesmo com o avanço vertiginoso da internet, não perderem seu brilho nem espaço diante da dinâmica da cultura popular ou folclore. Claro que as leis de políticas culturais ainda estão engatinhado em relação a toda forma de subjetividade existentes nas expressões e manifestações populares.

Assim, o que podemos aprender com os folcloristas? A valorizar e proteger o folclore ou cultura popular. Na defesa e intervenção de políticas culturais e educacionais por meio de manifestos, cartas, publicações, projetos, registros jogos virtuais entre outras demandas. Os estudos do folclore são como diamantes, não perdem o brilho e se refinam. Por isso, o folclorista não é cafona, nem antiquado, nem do arco da velha. Apesar de terem por vezes uma aparência avançada, são dinâmicos, arrojados e estão sempre prontos para quaisquer novidades. O folclorista é o homem do tempo, está na tradição, revista o presente e tem visão de futuro. Por isso, respeitem os folcloristas!

Referências

1 Como Nasce Um Cabra Da Peste.
2 Entrevista de Roberto Benjamim destaca Folkcomunicação.
3 Revista Internacional de Folkcomunicação.
4 Cramol: canto de mulheres portuguesas.
5 Edison Carneiro e o samba: reflexões sobre folclore, ciências sociais e preservação cultural.
6 Revista Brasileira de Folclore: intelectuais, folclore e políticas culturais (1961-1976).
7 Carta do Folclore Brasileiro.
8 Tour 360.
9 Katarina Real.
10 Arthur Ramos.
11 Concurso Sílvio Romero.