Tudo caminha, mesmo que aos tropeços, mas caminha. De repente as constantes repetições e dificuldades se impõem. Não é mais possível continuar mantendo aquele relacionamento pseudo amoroso, aquele compromisso familiar. Estar junto, constituir família em função de acertos, acordos e imagens que precisam ser construídas e mantidas é sempre desestruturador, solapador da própria individualidade, ou ainda, quando o que sustenta as dependências e dificuldades - as próprias não aceitações - são sacudidas e derrubadas, aparecem as crateras do medo e das dificuldades não enfrentadas. Cobrança passa a ser o critério, direitos são discutidos, responsabilidades são cobradas. Raiva, vingança, inveja, povoam o cotidiano dessas vivências. Sentir-se abandonado, ter seus direitos obliterados por leis parcializadoras passa também a se constituir na dificuldade que precisa ser enfrentada para diminuir o prejuízo. De repente, o que problematiza não é mais a separação, a quebra do acerto, a falta de afeto. Agora, o grave é como sobreviver às penalidades, sanções e regras criadas pelo outro por meio da legalização de seus direitos e obrigações. Ser obrigado a perceber o outro pelos prejuízos que ele infringe é sempre conflitivo e danoso.

Quando as situações privadas, particulares, os acordos que dois indivíduos estabelecem entre afeto e cooperação, transbordam para esferas públicas, jurídicas, novas configurações surgem, revelando a precariedade do culto à mente estabelecido anteriormente. Utilizar leis e instituições para punir e abandonar, para manter os propósitos e ascensão social e econômica, revelam sempre acertos frágeis mantidos em função de referenciais outros que não os do entendimento e do encontro amoroso.

As situações mudam, amores acabam, paixões arrefecem, tudo isso pode acontecer enquanto superação e dinâmicas frequentes do estar no mundo com o outro. Todavia, quando a própria segurança e bem-estar está plantada, suportada pelo outro - rejeitador ou receptivo - qualquer desequilíbrio causa tensão, drama, dificuldade. Procurar resolver com exigências, jogos e imposições revela sempre o arbitrário, o vazio, o despropósito dos relacionamentos. É a utilização do outro, do parceiro. É o ter que transformar atmosferas, situações amorosas, familiares em escoadouros e suportes das próprias dificuldades.

Perder, abrir mão, aceitar o que acontece só é possível quando se iniciam os questionamentos às próprias atitudes, apegos e exigências. Relacionamentos são possíveis e são também impossíveis, quando pelas contingências são transformados em necessários, úteis, inúteis, criando um panorama onde a coisificação, as regras, os acontecimentos preponderam, construindo tudo o que está em volta. Surgem as torcidas, os dois lados, interferências que sempre prejudicam, principalmente quando existem filhos. Viver nessa atmosfera, nessa discórdia obriga a enfrentar conflitos, medo, mentiras e desenganos. Toda vez que não se aceita a ruptura dos compromissos, a quebra de acertos, se tem diante de si os próprios problemas e dificuldades. Ter medo de continuar, de ir em frente é ameaçador. Não se sabe para que se existe. Como vai sobreviver quando as capas protetoras desaparecem.

Tudo está sendo revelado e ainda, as dificuldades se avizinham em velocidade estonteante. Não há como parar, e por isso mesmo ter que ser salvo, ter que recuperar os acertos ou, no mínimo, garantir boas indenizações, reparações por perdê-los.

Viver não é lutar, viver é respirar, enxergar, caminhar, desencontrar, estar aberto, estar fechado às contradições que nos situam, definem e motivam. Utilizar o outro para realizar os próprios sonhos é sempre aniquilador, pois o outro é transformado em objeto, massa de manobra, ingrediente das receitas de vida, receitas de como estabelecer uma família, receitas de ajuste e bem- estar. Esse processo de uso é sempre recíproco, só se usa quando alguém se deixa usar, e quando essa permissão acontece ela se estabelece também como uso mútuo. Nessa situação de reciprocidade, acertos, sonhos são estabelecidos e à curto, médio e longo prazo fracassos, sofrimentos, dores são garantidos para si e para todos que o cercam.

Compreensão, tolerância, afinidade não são atingidos via acertos. Esse prévio cogitado - o acerto - é sempre devastador, pois transforma em objeto tudo que está em volta ao criar plataformas de compromissos mantidos por obediência, enganos, medos e oportunismos.