Dormimos em um mundo e acordamos em outro. De repente Disney não tem mais magia, Paris já não é mais romântica, quem tem boca não pode ir a Roma, em Nova Iorque todos dormem, a muralha da China não é fortaleza e a Amazônia não é mais o pulmão do mundo! De repente, não mais que de repente, abraços e beijos tornam-se armas e não visitar os pais e avós torna-se um ato de amor! De repente se descobriu que o poder não tem tanto valor e que o dinheiro não tem tanto poder...

(Fragmento de um texto publicado por Sirley Guedes Lahoz em 14/04/20 no Facebook)

Quando subitamente tudo parece estar invertido, as coisas não estão mais nos lugares em que deveriam estar e velhos dogmas estão sendo quebrados é um sinal muito claro do universo que alguma coisa muito importante está acontecendo, não sendo possível nos esquivarmos às evidências, visto que elas nos são impostas. Neste caso é mais importante do que nunca ligar o nosso “semancol” e tentar decodificar a mensagem. “Por que será que isto está acontecendo comigo?”. Ou :“Qual é a minha parcela de contribuição para esse estado de coisas?”. “O que eu preciso aprender?”.

De preferência é necessário agir rápido e com destreza, pois a situação muitas vezes se configura como se um passo em falso pudesse ser fatal.

Frequentemente o aprendizado não é individual, mas coletivo. Nesse progressivo caminhar da humanidade, que vai para mais de dois mil anos, é imperioso que se tenha consciência dos próprios atos, que sejamos capazes de identificar e reconhecer suas consequências e ter clareza do nosso norte.

Dentro do continuum que nos é dado (nascer—viver—morrer) é importante que nos façamos estas perguntas: “-O que estamos fazendo com a oportunidade que nos foi dada para evoluirmos? O que queremos? Para onde estamos indo?” De que forma estamos contribuindo com o planeta e a humanidade para que nossa trajetória não seja banal, superficial, fútil e pequena?

Isto, sem esquecer jamais que vivemos numa relação de interdependência e circularidade: dependemos uns dos outros ao mesmo tempo em que influenciamos e somos influenciados reciprocamente.

Considerando que a Terra é um ser vivo, para fins didáticos, vamos considerar a representação da humanidade como uma pessoa. Sim, uma pessoa, que às vezes acerta, às vezes erra, às vezes fica deslumbrada com a dimensão de seu poder, principalmente quando consegue alçar voo para conquistar outras galáxias, mas que se vê totalmente desorientada quando se depara com um inimigo invisível. Então, em uma noite, ao despertar, tudo está repentinamente de ponta cabeça. E as mudanças são irreversíveis. Não há como voltar a recolocar as coisas em seus antigos lugares.

Neste novo contexto, o mundo de cabeça para baixo se apresenta com uma nova configuração e tudo o que podemos fazer é tomar distância da situação a fim de obter uma visão panorâmica desse novo estado de coisas. À distância conseguimos ativar nossa percepção ao mesmo tempo em que nos distanciamos de nossas emoções (são elas que empanam nossos sentidos e nos levam a reagir de maneira equivocada na maioria das vezes).

Desta forma, conseguimos então apreender1 a situação nova na forma de uma imagem / um conhecimento que emerge do todo, o que nos possibilita responder a algumas perguntas: O que estamos visualizando? O que nos parece este novo mundo? O que é bom, o que é ruim nesse novo estado de coisas? Como tudo isto nos mobiliza (o que sentimos / como somos impelidos a agir)?

À medida que refletimos sobre estas questões, mesmo que seja provisoriamente, vamos aos poucos encontrando o nosso chão e recuperando o equilíbrio (físico, mental, emocional). O passo seguinte seria então se situar, ou seja, encontrar um lugar para si neste novo contexto e estabelecer um plano de ação no aqui e agora.

O ser humano está adaptado, desenvolveu e aprendeu a viver com um determinado repertório e sob alguns princípios ao longo dos séculos. Um exemplo disso seria que, de acordo com registros da Bíblia, ao fazer o mundo, Deus teria dito a Adão que ele poderia dispor de tudo que estava sobre a terra, já que toda a criação lhe havia sido dada.

Então disse Deus:

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”.

Criou Deus o homem à sua imagem... (...) homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse:

“Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra.

Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão...” [O grifo é meu].

(Gênesis 1.26-31)

Infelizmente, no seu egoísmo e truculência o homem não alcançou a grandeza do ato de seu Criador e passou a fazer uso do que lhe havia sido dado de maneira desordenada, irresponsável, não sustentável; dilapidando sua casa, desrespeitando outras vidas.

Agora, com o mundo de ponta cabeça, seu repertório e sua onipotência caíram por terra. Para sua sobrevivência precisa desenvolver urgentemente um novo modo de vida e apresentar ao universo uma resposta adaptativa. Lembrando que não basta apenas sobreviver, mas viver com saúde física e mental. E ainda, não viver apenas para si, mas olhar para o lado e perceber que há um outro(s), cada qual com suas necessidades no seu pequeno / grande mundo (do micro para o macro).

Vale salientar que o segredo de uma boa experiência está não em como se aprende, mas como se vive. As experiências vividas são muito importantes. Muitas civilizações se beneficiarão disso no futuro. O que vivermos neste mundo irá servir para alterar o curso do universo para sempre.

A imagem do mundo de ponta cabeça em seus múltiplos apelos nos convoca a assumir nossa responsabilidade. Tornamo-nos mais fortes quando enfrentamos desafios, mesmo quando o resultado que se apresenta não é aquele que esperávamos. Talvez a maior prova seja estar sempre tentando se equilibrar na corda bamba, visto que nada é perene e/ou estável nesta vida e tudo está em constante mudança. Não é permitido acomodar-se ou cristalizar um determinado estado de coisas. Manter-se com as juntas flexíveis é uma necessidade constante, pois só assim poderemos nos (re)equilibrar.

Paradoxalmente, para dar a melhor resposta ao mundo exterior, é necessário voltar-se para o próprio mundo interior. Dentro de nós há tudo que necessitamos. A chave para nosso novo repertório lá está.

Na vida é preciso ser criativo e exercitar sempre o desapego. Estamos sendo constantemente obrigados a abrir mão de coisas às quais nos agarramos (ou estas nos são abruptamente arrancadas), para logo em seguida colocar outras em seu lugar.

Sinta-se com sorte por estar aqui e agora.

Nota

1 A palavra apreender significa “abarcar com profundidade” sugerindo com isso um olhar ao mesmo tempo extenso e profundo, duas posturas que a princípio parecem ser antagônicas.