Mudança só é possível com antíteses. Na esfera individual psicológica, antíteses são questionamentos. Um dos primeiros passos para o questionamento é largar os apoios, as barras de segurança e isso geralmente é feito quando se diz não, quando se desobedece ao que submete, governa e aniquila possibilidades.

Frédéric Gros, em seu livro Desobedecer, cita um trecho de Os Irmãos Karamazov no qual Dostoiévski fala sobre a volta de Cristo e vale lembrar aqui o relato de Ivan Karamazov, narrando esse reaparecimento no séc.XVI em Sevilha, na Espanha tomada pela Inquisição. A multidão o reconhece em uma praça e assiste quando ele ressuscita uma menina. Na mesma praça aparece o Grande Inquisidor. Cristo cansado e calado é carregado pelo pelotão comandado pelo Inquisidor que o leva à prisão do Santo Ofício. O Dominicano examina o rosto do seu prisioneiro e pergunta: “Es tu?” “Não respondas.” “Por que vieste nos atrapalhar.” Essa aparição de Cristo ameaça atrapalhar novamente com suas ideias de liberdade - e é uma autoridade da Igreja que o acusa! Há 15 séculos a Igreja vem organizando e exigindo obediência dos fiéis.

O Inquisidor fala da desobediência de Cristo nas três recusas dirigidas ao próprio Diabo, o Satã. “Lembra-te, recorda-te do que recusastes ao Tentador”. E Ivan Karamazov segue contando como o Diabo apareceu no deserto diante de Cristo que passava por longo jejum, propondo-lhe usar seus poderes de transformar pedra em pão para saciar a fome dos homens, ao que Cristo respondeu: “Não, nem só de pão vive o homem”. A segunda recusa refere-se ao episódio no qual o Diabo leva Jesus ao alto do templo e lhe pede para saltar, lembrando que está nas escrituras que anjos o sustentarão evitando a queda se ele for realmente o Cristo. Mais uma vez Jesus responde recusando-se: “Também está escrito: Não tentará o Senhor teu Deus”. E a terceira recusa foi quando o Diabo o leva ao alto da montanha e lhe oferece o poder universal sobre todos os reinos com a condição dele se prosternar diante dele. E Jesus lhe responde: “Não, pois só sirvo e adoro a Deus”. O Inquisidor relembra estas três tentações e três recusas como prova da desobediência de Cristo que se recusava a provar sua identidade com milagres, que esperava uma fé autenticamente livre.

Não obedecer ao Demônio significava não ceder à tentação de salvar e ajudar a humanidade pois Cristo não queria reduzir o homem à servidão. A obediência escraviza. A liberdade, o livre-arbítrio é o que significa, e essa liberdade dignifica o homem, embora o torne desesperadamente só. Como comenta Frédéric Gros: “Essa é a lição ‘demasiado humana’: é só na obediência que nos agrupamos, que nos assemelhamos, que não nos sentimos mais sós. A obediência faz comunidade. A desobediência divide”. A desobediência de Cristo às tentações do Demônio mostra, conforme F. Gros, inúmeras características da atitude do mesmo. “Ele se nega a ser Mestre de Justiça na partilha dos bens, como Mestre de uma verdade garantida para todos e objetivamente verificada e como Mestre de Poder subjugante e agregador. Em suma, Cristo não quer produzir obediência; ele exige de cada um essa liberdade na qual acredita que esteja a dignidade humana”.

A fala do Grande Inquisidor, produzida por Dostoiévski, mostra o fundamento exemplar para a condição existencial do estar-no-mundo: Liberdade, Vazio e Disponibilidade. Ser livre, ser humano é atirar-se sem expectativas nem garantias, atirar-se no cotidiano do estar-no-mundo com o outro. Essa não demarcação, esse vazio é o espaço, é tempo no qual floresce encontro, aceitação, descoberta. É o novo que transforma regras e padrões. Inquisidores, instituições, mapeiam e organizam caminhos, orientam, mas subtraem liberdade, descoberta, criatividade.

A repetição do viver, a garantia e certeza são estabelecedoras de repetição, de monotonia que esvazia, deprime e aliena. Pessoas na sociedade, com espaço e limites seguros, com comida suficiente, viram ornamentos, gadgets de mercado. Conseguir abrir as portas de suas gaiolas, de suas prisões, derrubar o jogo que, por recompensa gera obediência, é o que se coloca enquanto humanização. Deixar de ser integrante de manada, deixar de ser o que segue sem saber o quê, apenas considerando o que recebe de alimento e segurança. Só assim as necessidades são transcendidas e as possibilidades humanas realizadas.