Charlotte Salomon nasceu em 1917 em Berlim e foi assassinada em Auschwitz em 1943. Entre 1940 e 1942, pintou mais de 1300 guaches, dos quais selecionou 769 para Vida? Ou Teatro?. Apressadamente, esta jovem judia criou uma das obras mais extraordinárias do século XX. Para escapar às perseguições nazis, a artista exilou-se no Sul de França em 1939, emancipando-se de todo o poder e de qualquer previsão para o futuro: a sua obra é da liberdade e a do adeus à Alemanha e à sua cultura. Assolada pela tragédia familiar, Charlotte Salomon escreve, pinta e representa "Leben? Oder Theater? Ein Singespiel" entre o céu e a terra, numa temporalidade suspensa, como resposta à necessidade existencial de não morrer. Cada guache é um mergulho para o fundo da alma, uma forma de resistir à morte e ao desespero. Soma de experiências, sonhos, esperanças e traumas (os suicídios da tia, da mãe e, depois, da avó), Vida? Ou Teatro? é uma obra de arte total, simultaneamente sonora, visual e literária.

Charlotte Salomon sobreviveu porque Wolfsohn (DABERLOHN em "Vida? Ou Teatro?") lhe transmitiu fé. Conheceram-se na altura em que Alfred era professor de canto de Paula Lindberg, madrasta de Charlotte (PAULINKA BIMBAM, cantora famosa, em Vida? Ou Teatro?). Wolfsohn teve uma enorme influência espiritual e artística sobre Charlotte, e é provável que tenha sido o seu primeiro amor (sonhado, fantasiado?).

Charlotte Salomon torna-se CHARLOTTE KANN («Kann» do verbo alemão «können», «conseguir»?) em Vida? Ou Teatro? e nunca emprega o vocábulo «eu». Os termos «autoficção» ou «recordação» poderão qualificar esta obra: através do seu génio artístico e da sua cultura, Charlotte Salomon confronta a realidade. O tema é a memória, a relação com a história e a relação com os outros, bem como consigo mesma. A expressão deste Singspiel — como a artista define a sua obra — é uma modulação de emoções e amarguras, mas também de ironia.

O estilo de Charlotte Salomon evolui ao longo de "Vida? Ou Teatro?" e rapidamente ganha destreza e expressividade. Além disto, Charlotte recorre à história da arte através da citação. Salomon evoca obras dos artistas de que mais gostava: Michelangelo, Vincent van Gogh, Auguste Rodin, Edvard Munch, Marc Chagall, Henri Matisse… O enigma Charlotte Salomon é aquele de uma artista, de uma mulher habitada, que recebe a cultura de um mundo devastado e o veicula em solidão. O despojamento material é compensado pela magnificência espiritual.

A música e a pintura são formas de orquestração, ordenando a totalidade da obra e determinando a intensidade desta. Charlotte Salomon agarra-se à janela da arte por forma a evitar o suicídio por defenestração (como o da sua mãe e da sua avó). Vida? Ou Teatro? é a derradeira oferenda cultural de uma judia alemã — na qual a música, a pintura, o cinema, o teatro e a literatura, mas também a filosofia, a psicanálise e o religioso, se iluminam uns aos outros.

A dualidade é permanente: CHARLOTTE KANN e Charlotte Salomon, as duas janelas evocadas; mas também a vida e a morte; a vida e/ou o teatro; o feminino e/ou o masculino. A audácia, a sensibilidade e perspicácia de Charlotte Salomon na sua obra plástica são também sociais, políticas e feministas. Vida? Ou Teatro? é sobretudo uma canção de amor — uma das mais belas do século XX —, na qual a paixão está acorrentada à arte.

Nas oito páginas escritas que concluem a obra, o rosto do tão amado DABERLOHN regressa a Charlotte, voltado para o sol. Ela vê-se a morrer, a desvanecer, a escapar, para logo renascer como artista.