Estamos polarizados. Estamos divididos. Estamos encapsulados. Estamos reativos, sobretudo contra o que não está do lado de cá. Estamos explosivos. Estamos revoltados. Estamos pendulares em desequilíbrio. Repare que uso o verbo estar e não o verbo ser. Acredito que esse estado das coisas é uma passagem e não uma condição. Bem, assim espero, pois parece haver uma onda maluca reacionária que, na verdade, virou um tsunami em todo o mundo.

Segundo Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco, a finalidade suprema da vida é a eudaimonia, a felicidade, que simplesmente não é a busca pelos prazeres, riqueza e honras, mas sim a busca por uma vida virtuosa trilhada pela mediania (que não a mediocridade!). Ou seja, quanto mais nos extremos de tudo vivermos, mais longe estamos da felicidade. A falta de uma vida pautada pelo equilíbrio das paixões é, na minha visão, o grande motivo para essa desordem social segregadora generalizada.

Uma facata dessa desordem chegou nos espaços artísticos. Muitas polêmicas envolvendo a arte aconteceram no Brasil neste ano que finda em poucos dias. De um total de nove eventos artísticos que foram reprimidos, censurados, massacrados e duramente criticados, destaco dois pela repercussão em diversas esferas e também porque exemplificam a triste ignorância e pequenez de senso artístico e crítico de uma parcela da população que se vê no direto de tolher as escolhas do outro.

Nossa formação cultural é pobre. Nossa formação artística, paupérrima. Nosso poder de debate e senso crítico ainda mais. Não me cabe debater o motivo e nem dar uma arqueologia dos fatos que desembocou nessa situação, afinal não acredito haver uma resposta pronta para tal, mas não podemos negar que há uma limitação geográfica, econômica e educacional em relação ao acesso à cultura e à arte de um modo geral. Esse quadro se soma ao poder de expressão e comoção ilimitado das redes sociais e de um discurso malévolo e de visão curta. Voltou-se ao questionamento do que é arte, não visando a epistemologia, mas a censura. É o que aconteceu nos dois eventos mais polêmicos que trato. Eles aconteceram em duas das mais ricas e culturais capitais do país: Porto Alegre e São Paulo.

A exposição Queermuseu – cartografia da diferença na arte brasileira, na capital gaúcha, foi acusada de apologia à pedofilia, à zoofilia e ao vilipêndio religioso por segmentos religiosos e conservadores. A pressão nas redes sociais por meio de vídeos, declarações e incentivo aos correntistas do banco Santander a fechar suas contas atingiu o seu objetivo e o banco atendeu ao pedido dessa minoria e cancelou a exposição. Isso gerou ainda mais polêmica no meio por conta de a liberdade de expressão estar sob ameaça. Mas a polêmica virou uma maçaroca só, pois numa mesma argumentação tinha elementos de estética artística, de religião, de fomento público da exposição (lei Rouanet) e de política. Enfim, como a base para sustentar esse pedido ridículo foi feita em areia movediça, qualquer elemento minimamente aproximável foi usado. Passaram por cima da liberdade intrínseca do artista, da liberdade de escolha dos pais de levarem seus filhos e da liberdade de escolha individual de apreciar a arte.

Alguns meses depois foi a vez de São Paulo receber respingos dessa onda. A performance La Bête, feita pelo coreógrafo Wagner Schwartz no MAM-SP (Museu de Arte Moderna de São Paulo) suscitou ódio nos mesmos segmentos da sociedade por mais ou menos todos os motivos, sobretudo a pedofilia, já que uma criança tocou o artista nu (em seu pé e tornozelo) durante performance - uma das propostas da obra. O movimento reacionário foi tão ácido que a Assembleia do estado do Espírito Santo aprovou um projeto de lei que proíbe a representação sexual e nudez em exposições de arte no estado. Agora o projeto segue nas próximas instâncias, para o nosso desespero.

A arte é expressão do ser humano em sua plenitude. Debater o que ela é de fato é um exercício de raciocínio, apreciação estética e reflexão sobre nós mesmos. Ultrapassar o limiar epistemológico e classificar o que é arte por critérios alheios a ela só reforça essa onda horrenda que nos atinge nos dias de hoje. As pessoas são livres para fazerem a arte que bem entendem e para apreciar o que bem quiserem. No final do dia, o grande ponto é a tolerância. Enquanto isso não existir, teremos grandes debates e dispenderemos grande energia em coisas que nem deveriam ser debatidas, ao invés de nos concentrarmos no que realmente importa: a busca pela eudaimonia trilhando o caminho do meio.