A década de 1980 foi marcada pelo otimismo e pelo protesto; pela abertura política e pela reinvenção artística. O ônus social do milagre econômico da ditadura militar estava sendo imposto às classes trabalhadoras e à classe média. Diante disso, arte e política, música e pintura se aproximaram para dar voz aos silenciados da história. Grupos sociais e temáticas que não eram contemplados pelo universo estético vieram à tona com uma força potente e transformadora.

Nesse contexto nasceu a canção A Mão da Limpeza (1984) de Gilberto Gil e a obra Polvo de Adriana Varejão (2012) que, apesar de terem sido concebidas em décadas diferentes, dialogam intensamente. A Mão da Limpeza é uma das muitas canções brasileiras que passaram a tratar das questões raciais no país. O Polvo foi criado no século XXI, mas inspirado em respostas ao Censo do IBGE de 1976 e concebido por uma mulher que se tornou uma das principais representantes dos artistas plásticos da Geração 80. Seus trabalhos anteriores já traziam à luz temáticas como o colonialismo e a miscigenação. Os azulejos são uma presença marcante em seus trabalhos, sobretudo os portugueses, a partir dos quais traz uma discussão sobre o próprio sistema colonial. As obras de Varejão nos revelam as atrocidades e contradições dos processos de assimilação cultural e Polvo faz parte dessa trajetória.

Assim como as narrativas e lutas pelo protagonismo feminino, meio ambiente e igualdade social, os anos 1980 também foram marcados por movimentos e estudos acerca da identidade racial do povo brasileiro. As duas obras artísticas são simbólicas nesse sentido e potencializaram debates e a luta contra o racismo e o mito da democracia racial.

A obra de Varejão demonstra a diversidade e a complexidade da identidade racial brasileira. A música de Gil desvela a hipocrisia do mito da democracia racial no Brasil, mostrando a cruel face do racismo.

A Mão da Limpeza (Gilberto Gil)
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza

Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão

O Polvo é uma obra bastante complexa inclusive em sua elaboração. Varejão começou seu processo de criação a partir das respostas dadas ao Censo de 1976 quanto à pergunta: qual é a sua cor?. Não havia opções pré-definidas e as respostas foram diversas e intrigantes como bugrezinha escura, morena-cor-de-canela, cor de cuia, branca suja, jambo, ilás, miscigenação, sarara, burro quando foge, turva. Foi um total de 136 cores declaradas nesse censo, demonstrando a multiplicidade da identidade racial brasileira e a contradição de restringi-la à apenas três grupos raciais: branco, negro e amarelo.

Varejão, a partir das reflexões que fervilharam ao longo dos anos 1980 e 1990, produziu em parceria com uma fábrica de tintas a óleo 33 das 136 cores declaradas ao IBGE: as Tintas Polvo. Os tubos de tintas são a obra em sua essência. Porém, em seguida, Varejão a ampliou encomendando retratos seus a alguns artistas chineses e à brasileira Ana Moura, fazendo pequenas intervenções nessas obras com as Tintas Polvo. Os tubos de tintas com suas caixas organizadoras e os retratos com as interferências da artista revelando os diversos tons de pele participaram de exposições nacionais e internacionais, apresentando as cores do povo brasileiro a partir do olhar de Adriana Varejão.

Gil - um dos representantes do movimento cultural Tropicália dos anos 60 - atravessa gerações e chegou aos anos 1980 incorporando a linguagem e as discussões mais abrangentes que marcaram essa década. Suas composições versam sobre temáticas variadas como Filosofia, Política, comportamento, tradições populares, negritude e religião. Com a Tropicália realizou uma inovação estética, fundindo o nacional e o internacional, o popular e a vanguarda, ao mesclar vários estilos musicais como o Rock e o Baião. Em seu álbum Raça Humana de 1984 traduziu a inovação temática de sua época, retratando a sociedade brasileira e os conflitos raciais e sociais nela enraizados.

Gilberto Gil sempre teve uma trajetória política atuante e contestadora. Foi exilado entre 1969 e 1971 pela Ditadura Militar, atuou como Embaixador da ONU e Ministro da Cultura de 2003 a 2008. Como músico, lançou mais de 50 álbuns e ganhou grandes prêmios internacionais como o Grammy. Produziu a trilha sonora de filmes icônicos como Quilombo, Jubiabá e Um trem para as estrelas. É reconhecido como um dos principais artistas brasileiros.

Sua música A Mão da limpeza dá uma resposta dura e, ao mesmo tempo, bem humorada ao ditado preconceituoso de que negro quando não suja na entrada, suja da saída. O negro muitas vezes visto como sujo era quem limpava as manchas do mundo com água e sabão. O sujão incapaz de limpar sua própria sujeira era o branco. Eta branco sujão. Gilberto Gil descortina o racismo velado nas relações sociais e a realidade brasileira que, mesmo após tantos anos da abolição, ainda tinha as mãos negras limpando e construindo o país. Fez questão de cantar essa música no Rock in Rio de 1985, o que certamente causou sentimentos conflitantes em uma sociedade que nega o próprio racismo.

As duas obras artísticas – música e artes plásticas - dialogam e se complementam. Adriana Varejão nos faz refletir sobre o Brasil de múltiplas cores e identidades, e Gilberto Gil sobre as perversidades e contradições das relações raciais na sociedade brasileira. São um retrato pujante do pensamento e da Arte da Geração 80 no Brasil que impactaram tanto a realidade daquele momento quanto a de os nossos dias.