Minha prática de atendimento no SOS Ação Mulher e Família, organização da sociedade civil voltada ao combate da violência contra a mulher - na grande maioria dos casos o agente da violência é seu parceiro/marido ou companheiro - instigou-me a atuar na pesquisa e compreensão dos conflitos que envolvem relações homem/mulher marcadas pela violência física e/ou psicológica.

Lançando um olhar mais aprofundado sobre a questão, faz-se necessário empreender uma breve reflexão sobre o conceito de gênero para em seguida chamar a atenção para o peso que os “mandatos de gênero” possuem na manifestação do fenômeno da violência nesta população específica.

O conceito de gênero destina-se a desafiar a máxima freudiana de que ‘biologia é destino’, cujo pressuposto básico é que ser homem ou mulher já estaria determinado a partir da genitália e não haveria alterações neste quadro ao longo da vida do indivíduo.

Assim, para se contrapor à naturalização biológica, Simone de Beauvoir, enquanto precursora do feminismo, já afirmava:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro.

(Beauvoir, 1980, v. 02, p. 09)

O conceito de gênero proposto inicialmente por Stoller (1968), e mais tarde retomado por Rubin (1975) apud Saffioti (2004), pressupõe relações socialmente definidas entre homens e mulheres, envolvendo formulações culturais resultantes da imposição de significados sociais, culturais e psicológicos sobre identidades sexuais.

Joan Scott (1995) apud Saffioti (2004), aprofundando-se sobre o assunto, desenvolve uma ampla discussão sobre o conceito de gênero enfatizando suas três principais características: dimensão relacional, gênero como construção social da diferença entre os sexos, e como um campo primordial onde o poder se articula. Scott historiciza o conceito de gênero e propõe seu uso como categoria analítica e instrumento metodológico para entender como, ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber/poder sobre a diferença sexual. Ao fazê-lo, abre uma nova perspectiva teórica para desconstrução das hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença biológica, como se fossem verdades universais. Se o gênero é relacional, não se pode admitir no contexto das relações de gênero, um poder masculino absoluto. As mulheres também detêm parcelas de poder, embora nem sempre suficientes para sustar a dominação ou a violência que sofrem. Dessa forma, é possível se pensar na possibilidade de diferentes processos de subjetivação e singularização vivenciados por homens e mulheres (Araújo et alii, p. 19).

Por sua vez, a violência de gênero decorre da submissão construída e imposta pela ordem social de gênero. Para Saffioti e Almeida (1995), a violência de gênero apresenta entre outras características, o objetivo de preservar a organização social de gênero, que se funda na hierarquia e na desigualdade dos lugares sociais atribuídos devido ao sexo, subalternizando o gênero feminino.

Segundo Schreiner (2008), pode-se considerar violência de gênero não só a violência cometida contra as mulheres, mas toda forma de conservação das identidades arbitrariamente atribuídas a homens e mulheres, independente de sua identidade sexual e de gênero. Portanto, sujeitar os homens a reproduzir os papéis de dominação, autoritarismo e violência contra a mulher também se caracteriza como violência de gênero. Durante toda a vida do homem lhe são apresentados questionamentos acerca de seu comportamento sexual, exigindo-lhe posturas agressivas, determinadas, dominadoras. Acreditar que todo homem oprime e que toda mulher é oprimida, é a regra num discurso amplamente difundido e reproduzido.

Por sua vez, a violência cometida contra as mulheres ocorre na maioria das vezes no espaço privado, conhecido como doméstico, familiar – lar, local privilegiado para o exercício de atos violentos como forma de manter a relação hierárquica de poder e dominação.

Rigorosamente, o espaço privado do domicilio só apresenta esta qualidade para o homem, cujo poder frente à mulher lhe permite impor sua vontade. (...) A sacralidade da família impede que as mulheres sejam educadas para temerem seus próprios parentes masculinos. Assim, embora a mulher não esteja imune à violência praticada nos espaços públicos, está permanentemente exposta à violência doméstica, oferecendo a esta quase dois terços de suas vítimas.

(Saffioti, 1994, p. 453)

São dados do relatório anual Condiciones de Salud en Las Americas (OMS/OPAS, 1991):

Um fator significativo da vitimização pode ser o fato de que a mulher foi socializada para ser mais desvalorizada, passiva, resignada e submissa que o homem. Sem dúvida, a explicação da origem desse fenômeno e sua magnitude, há que buscá-la nos fatores culturais e psicossociais que predispõem o agressor a cometer esta violência e nas formas em que a sociedade tolera, e inclusive estimula, este comportamento. A maior parte desta violência se tolera em silêncio, se legitima em leis e costumes e se justifica como ‘tradição’ cultural. Sua forma mais endêmica são os maus-tratos à esposa, o que ocorre de forma universal em todos os grupos raciais, culturais e socioeconômicos

(Ministério da Saúde, 2002, p. 16).

Os “mandatos de gênero” são uma importante via através da qual a violência de gênero se articula e se instala nas relações entre os sexos. Assim, apesar de alguns avanços setorizados e restritos a alguns grupos específicos, tanto o homem quanto a mulher ainda são concebidos através de visões falsas e unilaterais que os limitam e impedem o desenvolvimento mais amplo de suas personalidades. Para o homem é dito frequentemente e é ensinado: ‘Seja homem!’ ‘Tem que ser macho!’ ‘Homem que é homem não chora!’ ‘Não pode ter medo!’ ‘Não seja mole!’ ‘Vai lá e briga!’ Para a mulher, que cumpra fielmente com seus deveres de esposa e dona de casa, e continue sendo uma ‘menina boazinha’, isto é, aquela que agrada aos outros e se anula, reprimindo assim, aspectos importantes de sua personalidade.

No Novo Dicionário de Língua Portuguesa Aurélio (1986), mandato está definido como “ordem ou preceito de superior para inferior; autorização que alguém confere a outrem para praticar em seu nome certos atos; procuração; delegação; missão; incumbência”.

Em outro trabalho meu, onde investiguei a via transgeracional de transmissão de mandatos em linhagens femininas (Braghini, 1995), amplifiquei o conceito de mandato à luz do referencial teórico psicodramático, utilizando-me da criação de um personagem, a que dei o nome de “Elo”:

O script deste personagem ‘Elo’ é integrar e manter a família unida. O mandato é equivalente a um bem precioso, um legado, uma herança que deve ser protegida permanentemente [o legado cultural dos gêneros masculino e feminino]. O mandato confere identidade à família e garante a sobrevivência de alguns códigos e leis através das gerações utilizando-se de um poder transgeracional. Eles são mantidos pelos códigos de lealdade e fidelidade [os códigos de lealdade entre homens e entre mulheres].

(Braghini, 1995, p.26);

Assim, os mandatos de gênero constituem um importante canal, cuja força/tenacidade contribui por manter ativo o legado cultural dos gêneros masculino e feminino através das gerações. Ao mesmo tempo em que isto vem reforçar a cisão e a oposição entre os sexos, cada qual introjeta seus estereótipos com a força de um dogma, o que, ao mesmo tempo em que reforça a identidade e a força de coesão do grupo, segrega e alija o outro diferente. Além disso, a contínua exigência de posturas agressivas ao homem a fim de provar sua virilidade funciona como um estrangulamento à livre expressão de sua personalidade, contribuindo para a elevação de tensão, e, por fim, à deflagração da violência de gênero.

Apesar de todo esse aparente determinismo não podemos nos esquecer, entretanto, que o ser humano é um ser ativo capaz de modificar a si e ao seu ambiente, ou seja, nós produzimos e fazemos cultura e não apenas (re)produzimos a cultura herdada de nossos antepassados. Assim, podemos deixar para as gerações vindouras um legado diferente que tenha a nossa marca. Basta trazer à luz o subtexto que está contido nas entrelinhas dos mandatos de gênero e escrever nosso próprio texto nas lacunas e contradições que se apresentarem.

Somos autores de nossa história.

Referências bibliográficas:

  1. Araújo, F. A. & MATTIOLI, O. C. (Orgs.). Gênero e Violência. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2004.
  2. Aurélio, B.H.F. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2. ed. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1986.
  3. Beavuoir, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980. Vol. 2.
  4. Braghini, Lucélia. Mandatos em linhagens femininas: herança de sorte ingrata ou história recriada? In: Cadernos de Pesquisa – NEP. Ano I, Números 1 e 2, Campinas: NEP/PRDU/UNICAMP, p. 75-88, 1995.
  5. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Cadernos de Atenção Básica n.08, Brasília, 2002.
  6. Saffioti, Heleieth Iara Bongiovani; ALMEIDA, S. S. Violência de Gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Revinter, 1995.
  7. Saffioti, Heleiete I.B. Gênero, Patriarcado, Violência. 2. Ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
  8. Saffioti, Heleieth Iara Bongiovani. Violência de Gênero no Brasil Atual. In: Estudos Feministas. Número Especial. Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, p. 443-461, 1994.
  9. Schreiner, Marilei Teresinha. O Abuso Sexual numa Perspectiva de Gênero: o processo de responsabilização da menina, 2008. (Tese - Mestrado - Universidade Federal de Santa Catarina).