Stelarc, nascido Stelios Arcadiou, é um artista e pensador australiano que há décadas desafia as fronteiras entre corpo, tecnologia e arte, provocando o mundo com uma pergunta inquietante: até onde podemos — e devemos — ir na integração entre o biológico e o artificial? Suas performances, muitas vezes radicais, são investigações profundas sobre a obsolescência do corpo humano, o potencial das máquinas e a emergência do pós-humano. “O corpo deve irromper seus limites biológicos, culturais e planetários. A liberdade fundamental é a possibilidade dos indivíduos poderem determinar o destino do seu próprio DNA”, afirma Stelarc, sintetizando sua visão sobre a inevitável fusão entre homem e tecnologia.

Vivemos em uma era onde a tecnologia não apenas nos cerca, mas nos atravessa e redefine. Smartphones, próteses inteligentes, implantes neurais, algoritmos que nos conhecem melhor do que nós mesmos — tudo isso já faz parte da extensão do nosso corpo e da nossa mente. O que Stelarc começou a experimentar nas décadas de 1980 e 1990, inicialmente visto como provocação artística ou delírio futurista, hoje ressoa como um prenúncio das discussões éticas e existenciais mais urgentes do nosso tempo. Para ele, o corpo humano, tal como o conhecemos, é limitado, ineficiente e obsoleto. Não há nada de espetacular ou sagrado nisso; pelo contrário, essa fragilidade é um convite à transformação.

Ao longo de sua carreira, Stelarc realizou mais de 30 performances, sempre explorando a plasticidade do corpo e o hibridismo com a tecnologia. Uma das mais conhecidas é o “Terceiro Braço Robótico”, uma prótese mecânica que se integrava ao seu sistema muscular e se movia através de comandos elétricos, transformando sua anatomia em uma plataforma expandida. Em outras performances, suspendeu seu próprio corpo por ganchos perfurados na pele, numa alusão aos rituais de suspensão corporal, mas também como metáfora extrema para a resistência física e a redefinição dos limites do corpo humano. Talvez uma das imagens mais impactantes de sua trajetória seja a do exoesqueleto de seis pernas, uma enorme máquina que ele controlava para se locomover, assumindo a forma de uma criatura híbrida entre humano e aranha.

Um de seus experimentos mais ousados ocorreu em 2007, quando, após mais de uma década de tentativas, implantou cirurgicamente uma orelha de cartilagem humana em seu antebraço. Cultivada em laboratório, a orelha foi projetada para acoplar um microfone e transmissor que permitissem a transmissão ao vivo dos sons captados, tornando o corpo não mais uma forma biológica, mas um híbrido de carne, máquina e código. Stelarc resumiu esse gesto afirmando: "A orelha não é para mim, ela é para os outros".

O que antes parecia ficção científica ou devaneio artístico agora se concretiza em laboratórios de bioengenharia e centros de pesquisa em inteligência artificial. Tecnologias de edição genética, como o CRISPR, interfaces neurais que conectam o cérebro a dispositivos externos, e próteses controladas pelo pensamento, sinalizam que o corpo humano está sendo reconfigurado. Filmes como A.I. - Inteligência Artificial e séries como Black Mirror deixam de ser metáforas e se tornam descrições plausíveis de um futuro próximo. A ficção científica hoje se confunde com a realidade científica.

Resistir a esse movimento é condenar-se à obsolescência. A frase de Stelarc soa como um alerta sobre o ritmo vertiginoso do avanço tecnológico. Ele argumenta que, diante da ascensão de máquinas mais eficientes e inteligentes, quem não se adaptar será superado. “Não estamos mais presos ao corpo que a natureza nos deu”, sentencia, desafiando nossa concepção de identidade, humanidade e até mesmo de alma.

Stelarc, porém, não é apenas um artista performático, mas também um engenheiro, filósofo e visionário. Sua obra não busca apenas chocar ou provocar, mas instaurar um debate fundamental sobre o futuro da espécie humana. Ela nos obriga a confrontar a fragilidade da nossa existência e a considerar a possibilidade de que a preservação do “natural” talvez não seja a melhor estratégia para a sobrevivência. Talvez devamos, como ele sugere, não mais pensar em como preservar o corpo, mas em como reinventá-lo.

A proposta de Stelarc se alinha com as discussões contemporâneas sobre o pós-humano, uma noção que sugere que, ao integrar a tecnologia ao corpo humano, podemos transcender as limitações biológicas e criar novas formas de existência. Esse conceito pode ser observado em outras obras de arte e na literatura, que abordam temas semelhantes.

Artistas como Eduardo Kac, com seu projeto GFP Bunny, criaram um debate sobre a transgenia e a modificação genética no corpo humano e animal. Kac cultivou um coelho geneticamente modificado para brilhar no escuro, um símbolo de como a manipulação genética poderia alterar nossa percepção sobre o que significa ser “humano” ou “natural”.

No cinema, filmes como Ghost in the Shell exploram o conceito de ciborgues e a fusão entre carne e máquina, colocando em questão a identidade humana no futuro tecnológico. A busca por uma alma humana, quando o corpo já não é mais humano, é uma das questões centrais desse clássico japonês de 1995 e do live-action de 2017.

Na literatura, Philip K. Dick, com sua obra Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, inspirou o filme Blade Runner, que explora a ideia de consciência e humanidade em seres que não são mais totalmente biológicos. Dick também abordou a linha tênue entre humanos e máquinas, questionando o que realmente nos torna humanos.

A intersecção entre o biológico e o tecnológico, o natural e o artificial, já não é mais uma mera questão filosófica ou científica, mas uma realidade iminente, explorada em diversas formas de arte e na vida cotidiana.

A reflexão de Stelarc sobre o futuro do corpo humano nos obriga a pensar: estamos preparados para aceitar que o corpo não é mais um limite, mas uma plataforma em permanente atualização? A verdadeira questão do nosso tempo pode não ser sobre como a tecnologia vai transformar a humanidade, mas sobre quem estaremos dispostos a nos tornar quando essa transformação for inevitável. Enquanto muitos de nós hesitam, Stelarc segue à frente, performando um futuro que já está em curso, não como ficção, mas como realidade vivida, inscrita na carne, na máquina e no código.

Referências

Redefining The Human Body As “Meat, Metal and Code”: An Interview with Stelarc.
Ear on Arm: Engineering Internet Organ.
Stelarc — Making Art out of the Human Body.
Art guide Australia.
Blade Runner: Androides sonham com ovelhas elétricas?.
Ghost in the Shell.