O debate sobre inteligência artificial no Brasil vem assumindo contornos interessantes. De um lado, estão os entusiastas que enxergam na tecnologia uma solução para todos os problemas. De outro, encontram-se os céticos, convencidos de que a IA anuncia um futuro distópico. No embate entre esses extremos, acaba-se perdendo a chance de uma discussão aprofundada sobre os caminhos que essa tecnologia deve tomar em nossa sociedade.

Chama atenção como alguns intelectuais parecem ter recentemente "descoberto" que a tecnologia pode ser usada de forma prejudicial. Como se já não houvesse precedentes históricos, como nos tempos de Gutenberg, quando a imprensa foi acusada de levar as pessoas à perdição por meio de livros impressos. Ou no período em que as calculadoras surgiram, e houve quem previsse o colapso da capacidade humana de realizar cálculos. Agora, a inteligência artificial ocupa esse papel de vilã, culpada por supostamente enfraquecer nossas habilidades cognitivas.

É verdade que existem riscos concretos e documentados. Há advogados fabricando precedentes legais, juízes delegando sentenças a sistemas automatizados e pessoas confiando mais em vídeos curtos do TikTok do que em diagnósticos médicos sérios. Esses exemplos são preocupantes e merecem nossa atenção. No entanto, será que a resposta está em declarar uma guerra contra a tecnologia, como novos luditas do século 21, empunhando livros como armas contra as inovações?

Outro ponto interessante é que muitos críticos da IA utilizam, sem questionar, ferramentas tecnológicas para externar seu discurso. Escrevem seus textos em computadores, publicam em plataformas digitais e compartilham nas redes sociais — tecnologias que também foram rejeitadas inicialmente sob a acusação de comprometer a inteligência humana. Usam buscadores online em vez de recorrer às bibliotecas físicas e digitam em teclados, mesmo com evidências científicas indicando que escrever à mão é mais eficaz para o aprendizado e a retenção. Parece que, para esses críticos, a tecnologia só se torna aceitável quando foi devidamente domesticada e inserida na rotina diária. O problema, no fim das contas, é sempre o uso que os outros fazem dela.

Enquanto isso, no mundo real, a inteligência artificial revoluciona áreas como a medicina, proporcionando diagnósticos mais precisos para o câncer, permitindo que pessoas com deficiência visual experimentem o mundo por meio de descrições automatizadas, estimulando avanços na criação de medicamentos e tornando a educação mais acessível com tutores virtuais personalizados. Porém, reconhecer essas contribuições não rende tanto impacto quanto dramatizar o futuro da civilização.

Reflexão sobre a vida com IA

O argumento de que a inteligência artificial torna menos inteligentes merece ser analisado com cuidado. Afinal, a estupidez humana nunca precisou de apoio tecnológico para prosperar. Basta percorrer os comentários de um portal de notícias para perceber que a ignorância se manifesta perfeitamente sem auxílio de algoritmos. O que temos agora é um conveniente bode expiatório para justificar falhas em nossa educação e cultura.

A responsabilidade da IA pelos milhões de brasileiros com dificuldades graves em leitura e escrita é inexistente. Dados do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional) evidenciam que, entre 2001 e 2024, o analfabetismo no Brasil caiu de 12% para algo entre 4% e 7%. Um progresso? Talvez. Mas o mesmo estudo indica que a parcela da população em nível proficiente — capaz de interpretar textos complexos e fazer inferências — permanece estagnada em apenas 12% há mais de vinte anos.

É irônico: enquanto alguns apontam o dedo para ferramentas como o ChatGPT como as culpadas pelo empobrecimento intelectual, os números mostram que já estávamos produzindo adultos com severas limitações em leitura muito antes da era dos algoritmos. Cerca de 20% dos brasileiros ainda se encontram no nível rudimentar, mal conseguindo interpretar bilhetes simples. Isso é fruto de um histórico de desinvestimento secular na educação, não do recente avanço das tecnologias baseadas em IA. Culpar a tecnologia é, simplesmente, uma maneira conveniente de evitar enfrentar problemas estruturais há muito enraizados.

Devemos nos preocupar menos com a existência da IA e mais com a falta de letramento digital crítico. Se tantas pessoas têm dificuldade em diferenciar uma fonte confiável de desinformação online, o problema está na formação, não na ferramenta. Seria como culpar um bisturi por erros cometidos por um cirurgião despreparado.

Os riscos cognitivos da crescente dependência de assistentes virtuais não são irreais. Usá-los sem moderação pode enfraquecer habilidades críticas e analíticas — da mesma forma que o uso precoce de calculadoras pode prejudicar o aprendizado da aritmética em fases iniciais da educação. Negar isso seria tão irresponsável quanto ignorar os avanços proporcionados pela tecnologia. No entanto, esses possíveis prejuízos não justificam pânicos morais ou uma rejeição completa das ferramentas digitais. O que realmente se faz necessário é um uso responsável aliado a estratégias pedagógicas sólidas.

Na área do direito, por exemplo, a utilização da IA pode ampliar o acesso à Justiça, facilitar a análise de jurisprudências e otimizar procedimentos burocráticos. A decisão está em nossas mãos: seguir em um debate seguro.