(…) E o que quer que exista para lá das fronteiras da carne e do sangue, lembra-te que não te pertence nem está em teu poder.
(Marco Aurélio, Meditações, Livro V)
Às vezes tinha a impressão de que os seus dias eram um desperdício organizado, uma rotina meticulosa e discreta de suicídio social com fôlego longo, sem dramatismo. Um escoamento lento, como a água que pinga de uma torneira mal fechada e afligia-o que tudo aquilo em que acreditava iria morrer com ele ou talvez até, antes dele, como se a vida fosse um ensaio geral sem estreia.
Embora gostasse de pessoas e não fosse imediatamente evidente, mantendo uma distância revelada no seu eterno e incomensurável fastio, sempre tentara perceber o que ia na cabeça dos outros por manifesta incapacidade de perceber o que ia na sua, um “desacontecimento”, a passar resvés diante das coisas importantes, a tentar escapar-se da inércia, da falta de vontade e dos azares comuns que lhe deixaram os sonhos pelo caminho.
Viviam-lhe os dias colados ao corpo como um casaco de má medida. As pessoas achavam-no cordial, inteligente até, e ele mantinha essa impressão com o cuidado de um actor que sabe que o papel é a única coisa que o separa do abismo.
Cumpria rituais, emprego-casa-emprego durante a semana e ao sábado o ritual de ir secar a roupa na lavandaria do bairro, onde estava sempre estacionado o Citroen de uma acompanhante que não usava saltos altos, só ténis, para poder fugir em caso de necessidade do apartamento alugado que se situava por cima de uma agência bancária onde, por vezes, os clientes (preferencialmente com uma certa idade) levantavam o dinheiro no multibanco antes de tocar na campainha do 1°C, fora isso, passava horas nos cafés e esplanadas a ouvir conversas para criar personagens, mas depois dispersava-se com questões como o tipo de caneta a usar, se uma Rotring de ponta 0,1 ou uma caneta de tinta permanente para tomar as suas notas. A obsessão era uma forma de adiar. A escrita uma maneira de viver.
E foi numa dessas manhãs de ritual de sábado que ao invés de escrever poesia lhe surgiu a ideia de escrever sobre a simplicidade dos gestos, o mero registar do movimento.
“Estou na lavandaria. Chegam duas mulheres para pôr a roupa a lavar, demoram algum tempo a tentar perceber o funcionamento das máquinas como se descodificassem um enigma sagrado. Ofereço ajuda. Recusam. Continuo o scroll infinito no telemóvel, fingindo distracção. Não se pode ser simpático. As pessoas desconfiam, acham que queremos meter conversa, querem estar sós.
Finalmente, as máquinas começam a trabalhar e saem para fumar um cigarro quando o tambor começa a rodar, um velho vem de canadiana levantar dinheiro ao multibanco.”
Quando a roupa acaba de secar atravessa a rua, senta-se na esplanada. Um café. Um caderno. Uma adolescente com o pai. Um donut. O céu parece querer abrir, mas não consegue. Há um casal com ar absorto. Mais gente. Ele toma notas, sabe que precisa de fixar o que vê, como quem tenta impedir o tempo de passar. Está fresco mas já não chove, passa um casal com sacos de compras nas mãos e ele continua a encher páginas do caderno.
Tinha criado um hábito: deixar livros numa cabina telefónica desativada. Era um gesto secreto, quase infantil, uma oferenda ao acaso. Colocava lá de tudo, romances, ensaios, livros técnicos, poesia e depois divertia-se a observar as pessoas que se aproximavam, os dedos que hesitavam antes de pegar nos livros, os olhares que folheavam páginas como quem espreita uma carta de amor alheia.
“Humm… Este vai levar um romance, aquela as Meditações do Marco Aurélio, obviamente, os livros técnicos ficavam mais tempo…”
Por vezes enganava-se, pensava que o velhote ia levar um romance e este abarbatou-se a um livro técnico sobre fotografia, a verdade é que em dois ou três dias os livros desapareciam. Gostava de dar uma segunda vida, quiçá terceira, aos livros.
Passa um rapaz com blusão fluorescente, outro pára para o deixar passar. Na mesa ao lado, duas mulheres falam alto, lêem o horóscopo. “Semana propícia para o amor, cuidado com alterações de temperatura que podem causar desarranjos intestinais.” Ri-se por dentro. Anota.
Três mulheres mais além falam de dentes brancos e cabelos sedosos. Dentes brancos são sinais de dinheiro, dizem. Depois a conversa vira, como se alguém trocasse o disco: a humanidade tem demasiado tempo livre, queixam-se. No início de século XX saíam das fábricas, mortos de cansaço e iam para casa comer e dormir, e talvez fazer filhos, hoje queixam-se que não têm tempo para nada, pois não derretessem horas no LIDL a comprar chocolate do Dubai!
A vida reduzida a uma metáfora de hipermercado.
O barulho das motas das aulas de condução ecoa pelas ruas. Interrompe o fluxo das ideias como uma tosse persistente. Oxalá não passem no exame, pensa — melhor não conduzirem, evita-se o desastre.
E ele volta ao caderno, ao fragmento de personagem que escreve — ou que o escreve — alguém que complicava por gosto, que só se sentia vivo na contrariedade, como se o sofrimento desse legitimidade à existência, traduzindo liberdade pela distância entre palavras a provar que a literatura parecia acontecer aí, na banalidade que ninguém quer. Nos gestos que ninguém vê. No velho que hesita. Na mulher que fuma. No pai que parte o donut da filha ao meio para que não se suje. Na caneta mal escolhida. No livro deixado numa cabina onde já ninguém telefona. Nas mais pequenas coisas…