O Vale do Jequitinhonha é uma região de encontros e tensões: cerrado, mata atlântica e caatinga; comunidades indígenas, quilombos e colonos portugueses; mineração de ouro, pecuária e, mais tarde, monocultura de eucaliptos; miséria e riqueza; artesanato em barro e extração de lítio; a serra e o rio. Foi ali que nasceu Manfredo de Souzanetto, em um universo rural que se movia em velocidade muito mais lenta que as regiões urbanizadas do estado de Minas Gerais. Foi no final da década de 1960 que o artista mudou-se para Belo Horizonte, estudando primeiro artes visuais na Escola Guignard e, posteriormente, arquitetura (sabemos que o ofício do artista no Brasil muitas vezes passa por formações paralelas e afins em busca da estabilidade de uma profissão mais convencional). Nesse período na capital, realizou diversos trabalhos que já questionavam e enfrentavam a exploração desordenada do território pelas mineradoras de ferro, criando obras seminais de intervenção na natureza carregadas de mensagens políticas. O desenho e a pintura foram os suportes recorrentes nessa fase inicial de sua produção.

Em 1974, Souzanetto ganhou uma bolsa de viagem no 5° Salão de Arte Universitária, o que o levou à França, onde permaneceu por 5 anos, estudando fotografia e continuando a pintar e desenhar. Ao retornar ao Brasil em 1980, deu início à vasta e infindável investigação sobre pigmentos naturais retirados dos solos de sua terra natal. Como uma continuidade dos trabalhos elaborados na década anterior, o artista partia do contato com a paisagem mineira – dessa vez, extraindo da terra o material para suas obras. Sobre telas polimórficas que quebram o formato-padrão retangular do suporte, diferentes amostras de solo carregadas de partículas minerais (como ferro, alumínio, cobre) são aplicadas em suspensão em resina acrílica, resultando em superfícies opacas de tons que vão do branco ao preto, passando por uma infinita gama de marrons, vermelhos, amarelos, rosas e cinzas. Em soluções mais ou menos saturadas, as cores também são aplicadas em áreas ora de formato geométrico, ora em composições mais fluidas.

As pinturas datadas do final da década de 1970 já revelavam o interesse do artista pelos tons terrosos e naturais. A tinta acrílica, contudo, era aplicada pelo verso do linho, que absorvia o líquido manchando o lado frontal com contornos irregulares, mas de aspecto meio aquadradado. Nos desenhos do mesmo período frequentemente figurava uma linha orgânica que remetia ao contorno das montanhas ou à linha do horizonte, provavelmente vinda da saudade da paisagem mineira. Em 1980, de volta ao Brasil, a própria estrutura da tela mudaria radicalmente. Os chassis poligonais passaram a ser construídos por Souzanetto no ateliê (localizado, primeiro, em Juiz de Fora e, posteriormente, no Rio de Janeiro). O Manfredo de cada cidade talvez seja, também, um artista diferente em cada lugar que habita. Seus trabalhos foram tornando-se cada vez mais experimentais, com configurações inéditas e volumes inusuais. Com a chegada dos anos 2000 vieram as complexas pinturas articuladas a partir de armações triangulares ou quadradas feitas em madeira, esculturas-pinturas montadas em arranjos ora lineares, ora ortogonais. Ensaios mais recentes apresentam estruturas semi-circulares e sinuosas, evocando ainda mais a organicidade tão inerente aos materiais que o artista emprega.

Assim, as obras que compõem “da terra, o que vem…” datam de 1976 a 2024, passando da geometria para o orgânico e de volta ao geométrico, ao mesmo tempo que conservam a memória sentimental das terras de Minas e suas cores formadas pelos óxidos minerais presentes nos solos coletados ao longo de um caminho de quase de 60 anos. Para o artista, a natureza e a paisagem são um fio condutor, um ponto de intersecção entre realizações de corpo tão distinto, tão variado. Em comum, suas pinturas emanam o afeto pela terra, ao passo que estabelecem uma nova realidade espacial e concreta ao valer-se de todo esse arcabouço como matéria-prima e suporte. Formalmente, elas incorporam também os estatutos da escultura e da instalação, jogando com os campos do bidimensional e do tridimensional, enquanto residem no limiar entre abstração e representação.

Ademais, Souzanetto vem conservando com seus pigmentos aquilo que o homem sacrifica brutalmente em nome do lucro imediato e em detrimento de um futuro sustentável – tudo isso desde um tempo em que ecologia, meio ambiente e conservação ainda não eram assuntos recorrentes, sequer urgentes. E segue, ainda hoje e constantemente, desafiando-se para encontrar outros vocabulários que lhe permitam expandir sua linguagem matérica e simbólica, sempre em contato com o que a terra pode oferecer como suporte, história, inspiração e imagem.

(Texto de Julia Lima e Luana Rosiello)