Casebre
[…]
Foi a estiagem que passou.

Nestes tempos
não tem descanso
a padiola mortuária
da regedoria.

Levou primeiro
o corpo mirrado da mulher
com o filho nu ao lado
de barriga inchada
que se diria
que foi de fartura que morreu.
O homem depois
com os olhos parados
abertos ainda.

Tão silenciosa a tragédia das secas nestas ilhas!
Nem gritos nem alarme
— somente o jeito passivo de morrer!

No quintal do casebre
três pedras juntas
três pedras queimadas
que há muito não serviram.
[…]

(Jorge Barbosa)

Enunciação

Foram essas as fomes que motivaram o título da minha intervenção Cabo Verde: a Emergência de um país devido à fome.

De 1941 a 43 e de 1947 a 48 a então Província Ultramarina de Cabo Verde experimentou 2 das piores fomes da sua curta história de 500 anos.

Dessas fomes resultaram cerca de 45 mil pessoas mortas sobretudo em São Nicolau e no Fogo. Essas fomes também determinaram uma emigração forçada de caboverdianos para irem trabalhar nas roças de cacau em São Tomé. Da fome de 1947 ainda resultou, imaginem, a morna Sodad, escrita pelo comerciante sãonicolauense Armando Zeferino Soares, uma música emblemática de Cabo Verde, que reflete a dor de ver partir tantos caboverdianos para a imigração forçada e o sentimento tão caboverdiano do querer ficar e ter de partir.

Atentem nesse trecho da letra deste hino que já foi cantado em toda a CPLP e não só que reflete o sentimento tão nosso - a saudade.

Ken mostra-bu es kaminhu lonji
Ken mostra-bu es kaminhu lonji
Es kaminhu pa São Tomé
Sodad sodad sodad
Sodad des nha terra Saninklau

Percurso histórico

Vejamos o percurso histórico de Cabo Verde para chegarmos à independência.

Tendo os portugueses chegado as ilhas desérticas em 1460, rapidamente a situação geoestratégica do arquipélago em pleno Atlântico médio chamou a atenção da Coroa Portuguesa, então já empenhada no grande empreendimento das descobertas.

Foi assim que Dom Afonso V, Rei de Portugal, apercebendo-se das potencialidades desta localização, ordenou de imediato o povoamento das ilhas.

Assim se fez, e em 1462 as ilhas de Santiago, Fogo e Brava já estavam sendo povoadas, não só com gente vinda do reino como com homens e mulheres africanos, na condição de escravizados, capturados pelos chamados Lançados, sobretudo nos rios da Guiné e do Senegal.

No poema Prelúdio do imortal Jorge Barbosa em versos inspirados ilustra o quadro deste achamento de forma tão aprimorada que não resisto à tentação de vos ler o poema:

Quando o descobridor chegou à primeira ilha
nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.
Nem setas venenosas vindas no ar
nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.
Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de vôo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.
E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pela fúria dos temporais.
Quando o descobridor chegou
e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada
e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n’El-Rei

nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

Já no Poema Panorama, Barbosa descreve quem foram os verdadeiros povoadores do arquipélago:

Destroços de que continente,
de que cataclismos,
de que sismos,
de que mistérios?
Ilhas perdidas
no meio do mar.
esquecidas
num canto do mundo…
-que as ondas embalam,
maltratam,
abraçam…
Montes alerta
implorando ao céu!
Montes alerta
nos seus contorcionismos extáticos
de séculos,
rindo para o oceano gargalhadas
que ficaram apenas começadas,
sorrindo para o céu esgares enigmáticos
como que a evocarem um drama milenário…
Praias desertas
de areias macias com fosforescências ao Sol
e restos de navios apodrecendo
ao longo;
praias abertas
às brisas marinhas;
praias cobertas
de conchas caprichosas,
búzios multicolores, calhaus hostis;
praias
onde naufragaram
navios,
aonde aportaram
caravelas,
onde saltaram
marinheiros queimados,
corsários, escravos, aventureiros,
condenados, fidalgos, negreiros,
donatários das Ilhas,
Capitães Móres…

Em pouco tempo Cabo Verde já se tinha convertido num ponto de abastecimento e querenagem dos navios que atravessavam o oceano Atlântico à procura de novas terras.

O povoamento foi tão rápido que na dobra do século XV para XVI, já em 1500, era possível encontrar nessas ilhas um povo diferente dos brancos e pretos que fizeram o povoamento inicial. Tratava-se de um povo mulato e mestiço que já falava um proto crioulo resultante do encontro da língua portuguesa quinhentista com as línguas nacionais dos diferentes povos africanos, Wolofes, Lebus, Sereres, trazidos do continente. Tal mestiçagem começava também a revelar-se na música, na gastronomia e no sincretismo religioso das populações que já viviam não só sobre o manto da religião cristã trazida pelos colonizadores portugueses, como pelos ritos religiosos das práticas tradicionais africanas.

A verdade é que no primeiro quartel do século XVI já era possível surpreender em Cabo Verde, a arqueologia da sociedade que viria a caraterizar o arquipélago muitos séculos volvidos.

Esta minha afirmação pode ser demonstrada por 2 factos que roçam o mítico, mas evidenciam, com meridiana clareza, o país de diásporas e de turismo que é Cabo Verde hoje.

Senão vejamos:

  • Há muitos anos tive o prazer de visitar em Civitá Vechia, não longe de Roma em Itália o Museo Etrusco de la Marina e fiquei verdadeiramente surpreendida ao constatar que, no segundo globo-mundo que foi construído, a “Insula de Capo Verde” é maior que o continente africano a que ela pertence. Refleti muito sobre esta incongruência e a explicação só pode ser uma: Cristóvão Colombo visitou seguramente Santiago e reza a lenda que ele também esteve mais de uma vez na ilha de Boavista, onde gostava de frequentar uma praia que mais tarde viria chamar-se de “Praia de Jon Cristom” alegadamente em homenagem ao notável navegador. Cristóvão Colombo viajava sempre acompanhado do irmão que era desenhador de mapas. Ora só a importância que as ilhas já tinham adquirido no trânsito do Atlântico pode explicar o erro cometido na construção do globo-mundo.

  • Mais recentemente o escritor José Eduardo Agualusa no grande romance A Rainha Ginga refere-se a um episódio protagonizado por um originário das ilhas de Cabo Verde, extremamente interessante.

Diz ele que “O mulato Cristóvão da Costa, o africano, nasceu nas ilhas de Cabo Verde, em 1525, e correu o mundo, como homem livre e como escravo, tendo padecido inúmeros tormentos, enquanto exercia o seu ofício de físico, com reconhecido valor, em Goa, em Malabar e em Cochim. Finalmente fixou-se em Burgos, tendo sido nomeado pelo senado da cidade para ocupar o cargo de médico dos pobres.”

Considero que estes factos são o prelúdio de um futuro anunciado.

Retorno agora à contemporaneidade para explicar porque afirmo que Cabo Verde nasceu como país devido à fome.

Como atrás assinalei ao longo da sua história a então província ultramarina de Cabo Verde foi várias vezes assolada pela seca que se fazia acompanhar de fomes e mortandades em várias ilhas, devido ao abandono a que estavam votadas pela potência colonial.

Contudo a fome de 1943 e o impacto da fome de 1947 tiveram algo diferente, pois nessa altura encontrava-se a estudar no liceu da ilha de São Vicente o jovem Amílcar Cabral nascido na Guiné, mas filho de pai caboverdiano. Cabral teve a oportunidade de assistir à barbárie que essas fomes representavam e basta ler um trecho do romance Famintos de Luís Romano para se fazer uma pálida ideia do que foram esses tempos terríveis.

—Infelizmente! Sabe o amigo quantos mil estão registados nos óbitos por disenteria e inanição, a que chamo francamente Fome?

—Olhe, nem vale a maçada saber.

—Pois essas mortes foram provocadas por desarranjos intestinais, levados a efeito simplesmente pela sistemática maneira de socorrer o povo com milho cru. Compreende-se: — essa gente anda desvairada, sem o apoio de nenhuma fonte, quase.

Quando consegue um punhado de grãos, não têm paciência para cozê-los, já porque a voracidade lhes tira o discernimento, já porque trazem o organismo num estado de tal modo enfraquecido, que isso, para eles, constitui simplesmente ordem de morte. Não permita que deem milho cru a tantos infelizes. Caldos densos, substanciosos, administrados com horário pré-estabelecido, e, em pequenas doses, farão o trabalho de revigoramento mais depressa que o amigo calcula, creia-me.

(Romano, 2019: p. 116)

Ora, o ter presenciado a grande mortandade provocada pela fome terá tido um impacto devastador no jovem Amílcar que, não só começou a escrever poemas de denúncia, como terão determinado a decisão de ele se formar em Agronomia para puder ajudar a combater as secas e suas consequências, e a ideia de lutar pela independência das colónias terá começado a sua gestação.

Foi assim que, poucos anos depois já concluído o curso de Agronomia o jovem Cabral engenheiro agrónomo trabalhou na Guiné e em Angola e em 1956 com 32 anos, decidiu com outros colegas criar um partido político para a emancipação das colónias.

Face a recusa do governo português colonial-fascista de Oliveira Salazar em aceitar a proposta do PAI, partido africano da independência, manter conversações para uma independência pacifica da Guiné e Cabo Verde, Cabral decide-se pela na luta de libertação nacional nas matas da Guiné, após a ocorrência do massacre de Pidjiguiti pela tropa colonial portuguesa sobre os estivadores do Porto de Bissau.

A 23 de janeiro de 1963 tem início a luta armada na Guine.

Cabral conduziu a luta com tanto empenho e sucesso que foi assassinado pelos colonialistas em 1973 com apenas 49 anos de idade.

Mas a semente antes lançada já estava a dar frutos. Tanto que em setembro 1973 o PAIGC, partido de Cabral declara unilateralmente a independência da Guiné-Bissau.

Em abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas, estimulado pelas guerras coloniais triunfa com o golpe de estado que ficou conhecido como a Revolução de Abril e instaura o regime democrático em Portugal.

Nessa sequência a 5 de julho de 1975 dá-se a declaração da independência de Cabo Verde precedida em 1974 e ao reconhecimento por Portugal da independência da Guiné.