Vivemos tempos em que a democracia, essa construção humana tão frágil quanto ambiciosa, parece estar constantemente à beira de um abismo. Em várias partes do mundo, discursos autoritários que acreditávamos relegados ao passado ressurgem com força, embalados por promessas de ordem e moralismo que, ao fim, nada mais são do que a negação da diversidade e dos direitos fundamentais. Os direitos humanos, conquista duramente alcançada em séculos de luta, tornam-se alvos fáceis de líderes populistas e do radicalismo que, por conveniência ou ignorância, os demonizam. Nesse cenário, as grandes empresas de tecnologia, conhecidas como big techs, erguem-se como atores poderosos, moldando o pensamento e o comportamento global, frequentemente sem prestar contas a ninguém.

O que fizemos com a utopia da democracia?

Nos últimos anos, assistimos a eventos que escancararam a fragilidade das democracias. A recente reeleição de Donald Trump nos Estados Unidos, marcada por uma retórica agressiva contra imigrantes, mulheres, muçulmanos e outras minorias, revelou como discursos autoritários podem ganhar força em sociedades profundamente polarizadas.

Durante seu governo anterior, vimos políticas de separação de famílias na fronteira com o México, onde crianças foram mantidas em jaulas, e um fortalecimento de violentos grupos de extrema direita que se sentiram legitimados pelo discurso do então presidente. As primeiras atitudes de seu novo governo mostram que Trump seguirá nesse caminho de forma ainda mais extremada, com o endurecimento e repressão aos imigrantes e populações LGBTQIA+, ameaças de invasão territorial a países vizinhos, saída de organizações mundiais, como a Organização Mundial da Saúde e o Acordo Climático de Paris.

No Brasil, a invasão de 8 de janeiro de 2023 ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal e ao Palácio do Planalto mostrou como o autoritarismo encontra expressão na violência. O episódio, inspirado em grande parte pela retórica de negação do resultado das eleições e por discursos que pediam o fim das instituições democráticas, revelou o quanto ideias golpistas ainda ecoam em uma parte da população. Ali, não eram apenas prédios sendo atacados, mas os próprios pilares da democracia brasileira.

Discursos como o de Nikolas Ferreira, um parlamentar que se tornou conhecido por sua retórica moralista e ataques a minorias, também mostram como figuras públicas, ao invés de promoverem a pluralidade e o debate saudável, muitas vezes fomentam a intolerância e o ódio. Tudo isso, encoberto por um discurso religioso que contradiz os verdadeiros valores cristãos. Quando presidentes e parlamentares usam o espaço público para incitar preconceitos, seja contra mulheres, homossexuais, adversários políticos ou qualquer outro grupo, colocam em xeque a própria essência democrática: o respeito às diferenças.

Enquanto os discursos autoritários e fascistas ganham espaço, as grandes empresas de tecnologia desempenham um papel inquietante. O algoritmo, essa entidade invisível e poderosa, dita o que vemos, como nos informamos e até como nos posicionamos politicamente. O escândalo da Cambridge Analytica em 2018, quando dados de milhões de usuários do Facebook foram usados para manipular eleições - incluindo a de Trump e o referendo do Brexit com a saída da Inglaterra da União Europeia - é apenas um exemplo de como essas plataformas impactam diretamente as democracias. No Brasil, a extrema direita se especializou em utilizar essa poderosa arma política-eleitoral de maneira calculada, evidenciando sua capacidade de fomentar o caos.

Mais preocupante é o papel das big techs na amplificação de discursos de ódio e na propagação de fake news. Grupos que espalham mentiras ou incitam violência utilizam essas plataformas para mobilizar apoiadores, com consequências devastadoras. Fake news viralizam em minutos, e os danos causados são praticamente irreversíveis.

Hoje, gigantes da tecnologia como Meta, Google e X (antigo Twitter) operam com uma influência que ultrapassa a de muitos governos, mas sem a mesma responsabilidade. O resultado é um terreno fértil para o populismo e a polarização, enquanto a utopia democrática, que deveria promover o debate livre e responsável, é sequestrada pela lógica do engajamento e da doutrinação política a qualquer custo.

Um episódio emblemático que ilustra essa realidade foi o ato de Elon Musk - CEO da Tesla, da X e uma das figuras mais influentes no cenário tecnológico - durante a posse de Donald Trump. Ao realizar uma saudação nazista, Musk não apenas chocou o mundo, mas também reforçou a normalização de símbolos históricos de opressão, violência e autoritarismo. Musk gerou repercussões globais, incentivando extremistas ao redor do mundo e alimentando a retórica de grupos neonazistas, que enxergaram naquele ato uma validação de suas crenças. Não houve, porém, nenhuma responsabilização por seu ato.

Em paralelo, vemos uma escalada nos ataques a minorias – sejam elas étnicas, religiosas, de gênero ou orientação sexual. No Brasil, discursos conservadores que atacam pautas dos direitos das mulheres, dos homossexuais, das religiões de origem africana e das populações indígenas ganham cada vez mais espaço em tribunas políticas e nas redes sociais.

O episódio em que Nikolas Ferreira usou o plenário da Câmara para ironizar as pessoas trans, colocando uma peruca e se referindo a si mesmo como "deputada", é emblemático desse tipo de ataque. O ato, além de ofensivo, evidencia como a retórica de ódio é normalizada em espaços que deveriam ser de respeito e debate democrático.

Outro caso de graves consequências é o da desinformação gerada pela Direita em torno do Marco Temporal, uma tese jurídica que restringe os direitos territoriais dos povos indígenas. A lógica utilizada é a mesma: narrativas distorcidas para justificar a exclusão e a negação de direitos fundamentais das comunidades originárias. Assim, a retórica de ódio e desinformação potencializada pelas big techs, tornam-se ferramentas para enfraquecer ainda mais os grupos vulneráveis e corroer os princípios democráticos.

A democracia, no entanto, é justamente o oposto disso. Ela é o espaço onde a diversidade deve florescer, onde o conflito de ideias não é uma ameaça, mas uma riqueza. Quando perseguimos minorias, atacamos o próprio coração da democracia.

Talvez o maior perigo que enfrentamos hoje seja o esvaziamento da utopia democrática. Afinal, democracia nunca foi apenas um sistema de governo; ela é, antes de tudo, um ideal. Um pacto coletivo de que, apesar de nossas diferenças, podemos coexistir de forma justa, debatendo e construindo juntos um futuro melhor para todos, sem exclusões.

Mas o que acontece quando essa utopia é substituída por cinismo e manipulações? Quando as pessoas deixam de acreditar que a política pode trazer mudanças reais? Esse vazio de esperança abre espaço para forças que ameaçam os próprios alicerces da democracia. A apatia, nesse caso, é tão perigosa quanto o autoritarismo, pois cria um terreno fértil para a ascensão da extrema direita, que utiliza discursos de ódio, desinformação e promessas de "ordem" para justificar a exclusão e o retrocesso.

Nesse cenário, as empresas de tecnologia, guiadas pelo lucro e não pela ética, amplificam as divisões sociais e a manipulação ideológica, enquanto líderes populistas se beneficiam da polarização. Paralelamente, discursos religiosos e autoritários reforçam narrativas excludentes, promovendo uma moralidade que rejeita a pluralidade e molda políticas públicas que perseguem minorias, beneficiam as elites e restringem liberdades individuais.

Uma democracia só sobrevive quando há participação, engajamento e debate. Sem isso, ela murcha e dá lugar ao caos de um poder descontrolado, onde vozes extremistas se tornam os novos pilares do sistema. Preservar a democracia exige mais do que acreditar: exige lutar, resistir e participar.

A utopia da democracia precisa ser resgatada. Isso não significa ignorar suas falhas, mas, ao contrário, enfrentá-las com coragem. Devemos exigir mais transparência das empresas de tecnologia, lutar por políticas que protejam os direitos humanos e fortalecer as instituições que garantem o equilíbrio de poderes: o Congresso Nacional, que representa o Poder Legislativo; o Supremo Tribunal Federal, que atua como guardião da Constituição; e o Executivo, que tem o dever de implementar políticas públicas inclusivas e respeitar os limites impostos pela lei. Além disso, órgãos como o Ministério Público e a imprensa livre desempenham papéis fundamentais na fiscalização e no combate a abusos de poder.

É legítimo questionar as instituições e apontar suas falhas, desde que isso seja feito de forma crítica, construtiva e dentro dos marcos democráticos. No entanto, é igualmente essencial defendê-las, pois são elas que garantem a existência de um sistema onde as vozes possam ser ouvidas e os direitos respeitados. Quando as instituições são enfraquecidas ou atacadas, como presenciamos durante o Governo Bolsonaro, abre-se espaço para retrocessos autoritários. O Brasil já viveu a experiência de uma ditadura militar, onde o fechamento do Congresso, a censura à imprensa e a repressão violenta silenciaram milhões de brasileiros. Esse passado nos alerta para os perigos de trocar a pluralidade democrática por uma promessa de "ordem" sustentada pela força e pela supressão de liberdades.

Defender as instituições não significa aceitar suas falhas incondicionalmente, mas reconhecer que, sem elas, o risco de cairmos novamente em um regime ditatorial é real. Fortalecer a democracia exige um equilíbrio entre a crítica responsável e o compromisso com a preservação das instituições, dos direitos fundamentais e da liberdade.

Sobretudo, precisamos nos lembrar de que a democracia não é um presente que recebemos, mas uma luta histórica e uma construção contínua. Ela depende de nós – de nossas escolhas, de nossas vozes, de nossas ações.

Como bem disse o escritor Eduardo Galeano, "a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, nunca a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".

Se quisermos que a democracia sobreviva – e floresça –, precisamos continuar caminhando. Ela nunca será perfeita, mas pode ser sempre melhor. Essa é a verdadeira beleza da utopia democrática: ela nos convida, constantemente, a sonhar e a construir.

Apesar do cenário sombrio, há motivos para acreditar. Em muitos lugares, vemos movimentos populares se organizando e comunidades lutando contra as desigualdades. A resistência existe. Ela é plural, diversa e criativa, e está longe de ser derrotada.

Talvez, nesse sonho compartilhado, encontremos a força para enfrentar os desafios de nosso tempo. E, quem sabe, resgatar a crença de que os direitos humanos, a distribuição de renda e a pluralidade não são um problema, mas uma promessa. Uma promessa pela qual vale lutar, dia após dia.