o cínico é o indivíduo que sabe o preço de tudo e não sabe o valor de nada.
(Oscar Wilde)
Atualmente, se ele assistisse vídeos, se participasse das redes sociais, se fosse atingido por fake news e propagandas, ele poderia dizer que cínico é aquele que informa e discute tudo, e não sabe nada. Essas pessoas constantemente agem sob o lema “o que vale para mim, não vale para você”, apesar de seus discursos enfatizarem solidariedade, participação e ajuda. Não se afetam pelos infortúnios e adversidades dos outros, muito menos com a veracidade dos fatos. Seus critérios autorreferenciados, baseados em vantagens, afirmação de ideologias políticas e outros empenhos, distorcem e negam realidades, classificam pessoas, situações e notícias a partir de seus interesses. É esse o sentido atual do cinismo, e a pessoa cínica é, portanto, imoral, obscena, enganosa.
Lançando um rápido olhar para a origem do termo vemos que Cinismo é uma corrente filosófica que remonta à antiga Grécia, no século IV a.C. A palavra, como chegou até nós, vem do latim cinismus, que por sua vez tem origem no grego kynismós – significando semelhante ao cão, que vive como um cão. Diógenes, o mais famoso entre os filósofos cínicos, vivia nas ruas e dormia com os cães, suas maneiras eram o testemunho vivo de suas ideias.
Ele desprezava as relações sociais, suas regras e compromissos, considerava hipócrita a maioria das atitudes vigentes na sociedade grega em geral, nas instituições, seja nas famílias, nos templos, nos locais de trabalho ou de estudos. Questionava a obrigação de valores sociais impostos e seguidos sem questionamentos e reflexões ou resistência. Menosprezava a vida voltada para prazeres e conquista de bens materiais.
Desqualificava a riqueza e as posses por menores que fossem, e por isso pretendia dar o exemplo com a própria vida caracterizada pela escassez, parcimônia e até mesmo pela privação. Como discípulo de Sócrates, ele levou ao extremo a máxima “conhece-te a ti mesmo” e reivindicava que o autoconhecimento só era possível pela abdicação radical das relações sociais e dedicação incondicional ao conhecimento de si. Tanto Diógenes, quanto os outros seguidores do Cinismo viviam com o mínimo e pregavam o desapego.
Eles declaravam que o ser humano não podia ser medido por suas posses materiais e que o prazer o distanciava de sua essência humana. Eram radicais, despudorados e agressivos com os que discordavam deles. Se contrapondo às convenções sociais e propondo uma vida simples e natural, eram mal vistos na sociedade grega, que os associava a animais – eles viviam como animais.
Apesar das críticas, foram imitados em outras culturas, mas nem mesmo os romanos, tão próximos dos gregos, conseguiam ser realmente fiéis aos princípios filosóficos do Cinismo, como seus criadores foram na Grécia. E assim, com o passar dos séculos, cinismo passou a ser considerado como fraude, o cínico passou a ser o indivíduo que só valoriza as próprias conveniências, que finge considerar a humanidade, por exemplo, mas que só pensa em si, que age com descaramento, sarcasmo e deboche, que mente ou tem duas faces.
Diante do exposto, considerando a concepção vigente hoje em dia de cinismo, do ponto de vista psicológico as mais evidentes vivências do cinismo são configuradas pelo engano, pelo uso do outro para fins próprios mesmo quando propõe solidariedade e a participação. Ações criminosas, fraudes, roubos, agressões físicas e até sexuais podem ser englobadas no cinismo, pois o cínico age insidiosa e perfidamente. Afasta-se de si mesmo, convivendo com as situações para se aproveitar das mesmas. Exemplos são frequentes: o “amigo” que confidencia para trocar confidências e depois chantageia, ou se aproveita de inúmeras injuções para realizar objetivos e ambições. O chantageador age cinicamente, pois essa é a forma pela qual ganha confiança.
O cinismo é um dos exemplos de comportamento autorreferenciado, no qual a única coisa que significa e vale é o próprio interesse, não há dignidade e a confiança depositada é usada como chave mestra para conseguir enganar, trair e amedrontar o outro.
Ao falar de cinismo é praticamente obrigatório nos referirmos à esfera política, à atuação dos líderes contemporâneos, seus jogos e dissimulações incontestáveis, seus discursos insidiosos que ao mesmo tempo que exaltam a democracia e a população, posteriormente favorecem a si mesmos e seus círculos empresariais. O engano, a sensação de cair em uma armadilha são constantes para a maioria da população. Eleitores e grupos apoiadores são traídos e as disputas pelo controle de imagens e resultados seguem seus cursos antecipadamente calculados.
Hoje em dia, a maioria dos cidadãos se ajustam às ordenações sociais, seguindo-as sem questionamentos ou reflexão, se entregando a fantasiosas satisfações de desejos, sonhos e ambições. Nem as constantes frustrações os detêm, pois se deixam enganar pelas próprias carências e ambições, que são manejadas pelo cinismo dos outros e pelos seus próprios.