Impermanência, mudança, transformação, dinâmica, todas essas palavras podem ser usadas para expressar o movimento característico ou estruturante de tudo que existe. Nada é estático e quando, por dificuldades relacionais, agimos como se fôssemos pontos fixos e imutáveis, estruturamos problemáticas psicológicas que nos isolam.
Imobilidade é desespero, é maldade, é o que acontece quando se nega a continuidade do estar no mundo com os outros. Essa negação é conseguida por atitudes autorreferenciadas. Se situar como vítima, assim como achar que tudo depende do que faz, do que empreende, e, consequentemente, se empenhar, é colocar-se fora da continuidade relacional, é destacar-se.
Destacar é criar pontos de confluência ou de dispersão. Abrigar a totalidade do que existe ou rejeitar inúmeras coisas cria juízos e regras. O indivíduo assim posicionado age como se fosse um legislador autoritário e impositor: avalia, julga, condena, ou aprova todos e tudo à sua volta. A partir de sua visão ou de suas vivências autorreferenciadas desenvolve um mundo de preconceitos nos quais se refugia, isolando-se e prejudicando, dificultando a própria vida. É querer ser o Osiris que realiza todas as coisas. É o homem querendo ter o poder dos deuses, diriam os mitólogos.
As mitologias das várias culturas são cheias de histórias de deuses que não só estipulam, mas também avaliam as ações humanas terrenas. Os mitos egípcios se destacam por sua riqueza de detalhes e por sua antiguidade, principalmente nas questões ligadas ao momento da morte associado a um julgamento do que foi a vida terrena do morto.
No Egito, Osiris é a divindade relacionada com a morte e a vida eterna ou a vida pós morte, desde tempos imemoriais. Suas lendas sobrevivem há séculos e todas as versões contam que Osiris tinha origem divina, viveu na Terra em um corpo material semelhante ao dos homens, foi traído e assassinado, retalhado, com partes do corpo espalhadas pelo país (o retalhamento do corpo era uma prática pré-dinástica e continuou nos rituais de mumificação, principalmente a separação da cabeça).
Sua irmã Isis recolheu todas as partes de seu corpo e, com palavras mágicas, o ressuscitou. Osiris voltou à vida e se tornou o Deus dos Mortos, e como imortal passou a presidir tudo relacionado à morte, principalmente o julgamento final que ocorre imediatamente após a morte de qualquer pessoa. É a divindade mais poderosa do panteão egípcio, legisla sobre a continuidade ou eternidade da vida. Essas histórias são corroboradas por achados arqueológicos que identificam seus símbolos presentes mesmo antes da 1ª Dinastia Egípcia, três mil anos antes de Cristo.
Osiris preside o julgamento. O coração do morto é retirado e colocado em um dos pratos de uma balança cujo outro prato tem uma pena. O coração, para os egípcios, simboliza o que atualmente se entende por consciência, é o centro da vida pensante e espiritual, a fonte do bem e do mal no homem, o ponto revelador de virtudes e vícios. A pena é o símbolo da justiça e da verdade. Pesar os dois – coração do morto e a pena da verdade – nessa balança de Osiris decide o futuro do morto: se seu coração for mais leve que a pena, ele vai viver eternamente no mundo dos deuses, no mundo da justiça, entre seres que só expressam verdades, entre aqueles cujas palavras são justas e verdadeiras. Do outro modo, com o coração mais pesado que a pena, ele será condenado, devorado pelos Comedores dos Mortos e deixará de existir.
A cultura egípcia na antiguidade, com traços que persistem até hoje, valorizava a vida terrena e material tanto quanto valorizava a vida espiritual e imaterial. A quase totalidade de seus ricos sítios arqueológicos atestam isso, as tumbas são expressão literal dessa ideia de que, se o morto for aprovado no julgamento de Osiris, ele precisará de objetos pessoais para seguir sua vida eterna. As condições do julgamento pós morte são muito ilustrativas dos valores cultivados e, do nosso ponto de vista, dos questionamentos fundamentais para uma vida plena.
Bondade e maldade, verdade e mentira são questões seculares, tão antigas quanto os homens, e fundamentam as tentativas de compreensão e explicação expressas nos mitos. As invenções, as transformações, as fragmentações, enfim, o próprio mito fala de uma série de explicações psicológicas usuais criadas pela onipotência, inveja e desespero. Decidir sobre toda e qualquer coisa, conseguir realizar seus desejos e sonhos é desesperador, as consequências são terríveis. Ganhar os céus é perder a terra, ganhar a terra é perder os céus, tanto quanto ter o coração mais leve que a pena é a grande aferição, verificação do inefável, do que não situa, nem pesa.
Inveja, medo, abuso, mentiras são construídas na imobilidade da ambição. Nas famílias isso é terrível, nos governos, quando essa atitude é característica dos governantes, é bastante lesivo e conflitivo o que se cria entorno, assim como é positivo no sentido de acirrar contradições e possibilitar mudanças.
Vida, morte, possibilidades e impossibilidades sempre são aspectos do nosso mundo para o bem e para o mal. Necessário se torna ser avaliado ou pesado por Osiris, em outras palavras, pelo questionamento de possibilidades e impossibilidades.