É numa relação comunicante e representativa que vejo os museus a serem instrumentos cada vez mais relevantes na comunidade onde se inserem. Numa altura em que são cada vez menos os discursos da cultura dominante, e como tal, instrumentos culturais cada vez mais inclusivos, falta somar ao seu pressuposto a questão relativa às modelações que a consciência humana tomará em relação às nuances do tempo e a natureza do seu presente. Isto é, como irá lidar a sociedade contemporânea com a memória? De que modo é que o museu procurará adaptar-se às novas circunstâncias? Como se irão manter relevantes enquanto instituições públicas? Como se tornam importantes nas vidas das nossas comunidades? Mas acima de tudo questiono-me sobre o seu papel, em tempos de cada vez maior incerteza e inquietude?

Observamos lamentavelmente, que os atuais conflitos na Ucrânia e na Palestina surgem na sucessão da decadência da matriz humana. Uma ruptura com os valores sociais comprometida pela verosimilhança política que coloca à sua margem, o desinteresse comum para passar a assumir interesses subjetivos, alimentados pela cultura dominante.

Perante um contexto de sobrevivência, para que servem os museus? A eminente irrelevância assumirá para muitos, a certeza clara de um instrumento aparentemente passivo, efémero símbolo e auto-retrato do falhanço ou fatalidade humana. Por outro lado, dois anos após o início da guerra na Ucrânia, o levantamento mais recente dos danos provocados pelo conflito e realizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) confirma estragos em 341 espaços culturais, incluindo museus (31), monumentos (19), bibliotecas (14), espaços religiosos (126), arquivos (1) e ainda outros edifícios de interesse histórico ou artístico (150).

O caráter quase fúnebre que esta obliteração significa adianta várias questões de natureza existencialista, que em última instância traduzem a relevância que estes instrumentos imprimem. Não fosse o seu impacto na construção de comunidades instruídas para o futuro, através das vitais ressonâncias da memória coletiva, poderíamos concluir que perante essa realidade os instrumentos culturais passariam ao lado de conflitos tão ideológicos quantos os que presenciamos na segunda década do século XXI.

A matriz humana, distingue-se precisamente pelo cunho da conjunção da consciência em relação a uma memória do tempo que nos permite operar de forma subjectiva e única o nosso presente. Ao abrigo dos instrumentos culturais e artísticos que entre o público e o privado são partilhados, manifesta-se a sustentabilidade do futuro. Neste sentido, estes espaços, tornam-se praças fortes para a prevenção do fatal declive a que as sociedades contemporâneas estão sujeitas, desenvolvendo políticas que aproximem a comunidade dos seus pólos de ativação e mediação.

Segundo um artigo escrito em 2021 pela curadora Filipa Oliveira para a revista umbigo, é imperativo desenvolver um pensamento articulado sobre os vários aspetos que as instituições culturais desenvolvem, para a produção de políticas de vizinhança que exploram o diálogo com as comunidades locais.

Trata-se do ensaio transdiciplinar em virtude de uma reflexão que traga para o centro da discussão outros princípios e valores que convirjam com uma maior aproximação das comunidades nos quais os instrumentos artísticos e culturais se inserem. Entre a introdução de novas tecnologias, ao reforço de discurso pluralistas, a adesão artística e cultural deve continuamente ultrapassar a condição centralizada do conhecimento e do interesse pela arte, pelo passado, ou pela ciência.

Perante esta reflexão, considero 4 medidas basilares para o enquadramento instrutório que deve sustentar a tese levantada por este tema.

Conhecer a comunidade

A condição ortodoxa da existência de um museu compreende a exibição de obras ou outros objetos e/ou artefactos com valor artístico e/ou histórico, como sendo uma instituição responsável pela preservação da memória coletiva sobre a qual canaliza e filtra informação relevante para a consequente instrução do ser humano. Esta ação, embora não se ausente de passividade em virtude das respostas mais técnicas, próprias do museu, compreende uma dimensão interventiva e artística, contornada pelo espírito crítico do seu tempo.

O curador Harald Szeemann produziu, em 1973, uma exposição comissariada por ele, com o título "When Attitude Becomes Form". Este projeto, que reuniu alguns dos artistas mais relevantes da altura, propunha discutir uma nova proposta museológica emancipada pela intervenção do curador. Esta atitude, que tomou forma, como indica o título, pressupõe uma transformação em relação à sua anterioridade, que compromete o futuro com novas decisões que a arte pretende discutir. A alteração implica a natureza mais passiva dos instrumentos culturais do estado, que se comprometem a desenvolver posições mais ativas em relação à comunidade que os orbita, promovendo em resposta a esta alteração mais ideológica uma atitude mais social, procurando tornar-se no reflexo das comunidades.

Sobre este registo, que procura respeitar e valorizar a representatividade e inclusão como meios de resposta horizontais a todos os intervenientes, subentende-se a existência de um pilar fundamental para a consolidação democrática, que nutre e alimenta as instituições museológicas. O público humaniza o museu e, desse ponto de vista, gera-se a tónica de fomento para as políticas de vizinhança que alteram estruturalmente a sua própria composição interna.

Conhecer a comunidade implica, por sua vez, a criação de uma análise detalhada sobre o contexto sociocultural, político e económico, que em última instância permita construir, de forma adaptada, os melhores discursos que os instrumentos culturais devem adotar. Em virtude da determinação dos discursos dirigidos à comunidade, é fundamental encontrar o perfil correto do interveniente.

Estabelecer políticas de vizinhança

Perante esta lógica comunitária em que os museus e associações culturais se inserem, é fundamental estabelecer políticas de vizinhança/mediação que permitam uma aproximação do público envolvente. É imperativo reconhecer que a relação estreita entre ambas as partes privilegia o bem comum, emancipando discursos bilaterais com estímulos fundamentais para o cultivo da atividade social, económica e cultural da zona em que se insere. Indicam-se então parceiros estratégicos que necessitam de ser valorizados, de modo a fortalecer os vínculos e consolidar o dinamismo local. Todos estes discursos podem ter diversas formas, sendo que o mais importante é produzir um ambiente agradável que seja, acima de tudo, um lugar de conhecimento, democrático e transdisciplinar na medida da retenção de conhecimento e do desenvolvimento de discursos.

A partir desta prática, é possível reconhecer no trabalho desenvolvido pelos museus que a política de vizinhança é efetivamente transversal à sua própria identidade, gravitando à volta desse trabalho importantes referências que sustentam a capacidade de criar discursos eficazes para a integração da comunidade.

A horizontalidade desta medida reside no núcleo da comunicação entre o instrumento cultural e a comunidade, com a intenção de estabelecer vias de comunicação mais robustas, inclusivas e representativas que, em última análise, pratiquem de forma funcional e pragmática os princípios e valores, somados aos museus. Esta qualidade transcendente do museu pode ir ao encontro de políticas pedagógicas que, através da mediação, promovam ensaios sobre a transformação de comportamentos na sociedade através do pensamento artístico, histórico e científico.

Em sentido prático, a consolidação de parcerias com instituições sociais do estado, nomeadamente escolas, lares, centros prisionais, etc., surge como um manifesto dirigido à maior inclusividade e modulação da comunidade, agregando ao seu trabalho o fomento do pensamento crítico.

Exemplo da aplicação de políticas desta natureza leva-me a falar do exemplo do Teatro D. Maria, que desenvolve o projeto “Primeira Vez”, o qual convida todas as pessoas que nunca viram uma peça ou nunca entraram no D. Maria II a descobrir este espaço, a programação e os bastidores.

Ações com contornos semelhantes aos praticados no teatro D. Maria podem imprimir ressonâncias fundamentais para a contínua e progressiva evolução da sociedade, usufruindo das potencialidades mediadoras da arte.

Não usar o vocabulário do lucro

Em vez do “vocabulário do lucro” e da imposição dos números, a curadora Filipa Oliveira sugere uma maior incidência sobre um pensamento de imersividade da experiência museológica e artística. Propõe às instituições e associações culturais que reflitam sobre modos de mediar discursos, tornando as exposições mais inclusivas, sem nunca desvirtuar a propriedade intelectual e estética dos artistas. Regenerar uma memória coletiva pode, neste sentido, ser uma ação produtiva para a consolidação desta matriz que não torna unilateral o discurso, que em alguns casos, é denso e codificado.

Neste âmbito de aproximações com a comunidade de Vila do Conde, a Solar-Galeria de Arte Cinemática produziu a exposição "Não fechar, voltamos todos os dias" (2014), com a artista Carla Filipa. Exibem e projetam imagens e objetos provenientes do convento de Santa Clara de Vila do Conde, que antes de entrar em abandono, após a última reabilitação entre 1928 e 1932, abrigava um conjunto de objetos religiosos sobre os quais se mantinham intemporais algumas inscrições marcadas na época, permanecendo e, subsequentemente, servindo de mote expositivo para a artista, que retirou alguns objetos do seu espaço de origem para os deslocar até à Solar, com a proposta de sugerir uma reinterpretação da memória coletiva que, naquele momento, se torna alvo de experiência crítica.

Neste sentido, a Solar e a própria artista sublinham a regeneração de uma memória coletiva, consolidando a proposta de aproximação do público local, estimulados tanto pela imersividade da experiência expositiva, fundamental para a sua inclusão, como pelas próprias obras que materializavam um discurso produtivo do ponto de vista histórico e social. Traduzido para imagens em movimento contaminadas pelos efeitos das artes visuais, permanecem ressonâncias latentes que, por sua vez, produzem efeitos de satisfação e, consequentemente, aproximação, a partir destes diálogos que, além de consolidar a inter-relação do observador com a obra de arte, consolidam a experiência estética e conceitual do observador.

O caso da artista Tânia Dinis, que expôs no âmbito da Animar’16, é também demonstrativo deste caráter imersivo sugerido a partir da reinterpretação da memória coletiva local, implicando para isso a recolha de registos audiovisuais do mar das Caxinas, assim como dos seus habitantes, que apresentavam uma ausência característica da sua existência, na medida em que não existiam registos que formalizassem a sua aparência. Assim, a partir da residência artística desenvolvida pela artista Tânia Dinis, a mesma procurou recolher imagens e sons que refletissem sobre esta mesma ausência, assim como da própria vida dos habitantes das Caxinas.

Desenvolvido e exposto, o trabalho permitiu que os intervenientes da ação artística fossem convidados a assistir e a pensar sobre a obra, revelando uma participação interessante. Por sua vez, este ato desdobra mais uma vez uma descodificação dos sentidos sofisticados levantados pelas ideologias filosóficas plasmadas na obra, assim como aproxima a comunidade a partir de uma experiência artística mediada, a pensar neste aspeto de inclusividade alargada, sem nunca desvirtuar o trabalho artístico e curatorial. Deste modo, sublinha-se novamente a intenção por parte da Solar de reabilitar leituras e discursos autóctones para a comunidade, percebendo que a partir dessa inclusão a relação mantém-se consolidada e a atividade da galeria fortalecida.

Agentes de mudança

O museu, enquanto “guardião de um património intangível”, deve procurar emancipar-se como agente de mudança. Converter-se em espaço de diálogo, incentivando discursos inclusivos, sobretudo democráticos e, por isso, plurais. A partir dessa base horizontal, equitativa e convergente, abre-se espaço para o pensamento crítico, partilhado por uma comunidade que é convidada a intervir ativamente nas exposições, reconstruindo, por sua vez, meta-narrativas que constituem a atualidade global.

Ao abrigo desta conduta que alimenta o seu estado de ressonância a partir do conteúdo, o exemplo concreto da exposição "Este Espaço que Habito", do Espaço Mira, situado no Porto, surge na qualidade de arquétipo para me debruçar sobre o impacto e a utilidade inerente à convergência com ações de natureza social, num gesto que aproxima os centros culturais das comunidades mais afastadas do seu núcleo.

O Espaço Mira, em parceria com o Movimento de Expressão Fotográfica (MEF), trabalhou com jovens em cumprimento de medida tutelar de internamento, por via do afastamento temporário do seu meio habitual. Pretendeu-se trabalhar o autoconhecimento e as competências sociais a partir da fotografia, com a intenção de promover curiosidade e imaginação, imune ao embaraço. Foram convidados a construir as suas próprias câmaras escuras, conhecidas por câmaras pinhole, e posteriormente a registar as suas próprias imagens. A atividade encerrou-se com o efeito sintomático da materialização da exposição, com os registos fotográficos da autoria desses jovens.

Os efeitos da exposição estabelecem contornos curiosos, pois não se tratam de artistas afirmados, mas por empréstimo de um interesse pontual que atinge novos significados após a integração num processo criativo e crítico que pensa de forma imaginativa e desembaraçada as idiossincrasias da vida. Enquanto observador, estive perante imagens reduzidas à escala da intempérie humana em esforço por alcançar uma luz que sobrevive a partir da fotografia. A relação criada entre os jovens e o aparelho analógico constitui uma ação de mudança. As narrativas pessoais, desvinculadas dos conceitos artísticos, promovem um olhar íntimo sobre a sua vida, perante uma condição limitada que opera sobre as suas liberdades. Neste estado de intermitência, a leitura do mundo é exata e objetiva, apoiando-se sobre uma memória que persegue a liberdade e a integração social.

De apoio às imagens registadas, foi possível ler frases pessoais escritas pelos seus autores, num gesto que apela à partilha das tristezas e alegrias que perduram no seu tempo, captando a essência genuína e melancólica de quem a expressa.

Mesmo estando preso, este projeto fez-me sentir livre por alguns momentos.

Acho que vou chorar um dia mais tarde quando olhar para este álbum. Foi uma fase da minha vida e estão aqui as janelas que vejo todos os dias. As portas que vejo todos os dias. Vou lembrar-me e, para mim, vai ter sentido.

Estes artistas anónimos somaram-se às ressonâncias da experiência artística por efeito imediato das potencialidades da arte. Saltam para fora de si e impõem questões a partir dos gestos que combinam a ação fotográfica, agregando novos significados à sua relação consigo próprios e, em última análise, com a arte. Este exercício sublime retrata uma paisagem humana que compromete a relação da arte com a comunidade e a indissociável necessidade de tratar as diferentes metarrealidades que nos constituem.

Como irá lidar a sociedade contemporânea com a memória? De que modo é que o museu procurará adaptar-se às novas circunstâncias? Como se irão manter relevantes enquanto instituições públicas? Como se tornam importantes nas vidas das nossas comunidades?

Segundo o filósofo francês do século XII Pedro Abelardo, o conhecimento reside nos princípios da questão, permitindo transcender a solução através da reflexão. Na base destas formulações que partem da pergunta, considero relevante pensar nestas estratégias, enquanto pontos de contacto que apenas podem produzir efeitos se forem continuamente questionadas. Os contextos geográficos e sociais respeitam as suas idiossincrasias e, em sentido simétrico, é fundamental imprimir ressonâncias ajustadas aos contornos da comunidade. Construir discursos pluralistas e representativos implica uma consciência ampla e orgânica em relação aos efeitos evolutivos que moldam a atualidade global.

Os efeitos agregam uma função comum radicada numa atitude de mudança. A tónica que promove a transformação em acordo com as idiossincrasias sociais consubstancia uma função direta e duradoura dos museus, que em última instância devem operar ao nível da memória e da experiência sinestésica e a sua relação com a comunidade. Garantir as suas fundações traduz o respeito ontológico pela humanidade.