Ernest Hemingway foi um escritor americano, que nasceu em 1899 e morreu em 1961, tendo-se suicidado aos 62 anos, por “viver demais”. Teve uma vida inquestionavelmente cheia e grandiosa, marcada por inúmeras viagens e as mais variadas vivências.
Foi soldado, jornalista, correspondente de guerra, viajante, aficionado de touros, caçador, pescador, praticante de boxe, apaixonado e até mulherengo, amigo dedicado e sempre, escritor. A sua escrita era simples, dotada de uma imensa fluidez da narrativa, sendo que se consideram três qualidades essenciais comuns aos seus livros: o facto de conterem sempre uma história que é reflexo do seu interior, através de uma narrativa simples, bem como a capacidade e facilidade de escrever diálogos absolutamente naturais, que possam imitar de forma genuína pessoas a conversar.
Hemingway viveu muitas aventuras sobre as quais quis escrever, e era um homem apaixonado pela vida, que chegava mesmo a confundir várias vezes a vida e a escrita - enquanto prazer, vício e missão. Tinha o hábito de anotar o número de palavras que escrevia por dia e fazia-o de pé.
Em Abril de 1934, por consequência da Grande Depressão dos EUA, Hemingway comprou um barco para navegar em alto-mar. Acabara de regressar com a sua mulher Pauline do primeiro safari em África, e um mês antes, decide regressar. Acompanhado por dois amigos andou à caça de leões, búfalos, antílopes e rinocerontes, na região em torno do Kilimanjaro, durante três meses.
Em 1935 publica “As verdes colinas de África”, reflectindo o quanto encontrou na savana africana uma paisagem que o preenchia e que despertava memórias dos dias felizes nas florestas de Michigan, com uma saudade notória, como descreve:
"Agora, enquanto olhava para o céu com as nuvens brancas a deslocar-se ao sabor do vento, por entre o túnel de árvores sobre a ravina, o meu amor pelo campo era tanto que sentia-me até feliz como se sente um homem depois de ter estado com a mulher que ama realmente (…)”
Quando Hemingway publica o conto, estava muito doente devido a uma necrose na perna, pelo que permanecia em África ao mesmo tempo que observa o manto de neve do Kilimanjaro, a partir de uma planície quente. Durante todo esse tempo, vai reflectindo sobre a sua vida e o próprio talento artístico. No fundo, existe neste conto uma referência evidente à insegurança do autor, ao quanto poderia ser corrompido pela fama e pela imagem pública. Há ainda a presença de um certo existencialismo, em que os heróis são confrontados com a morte, que toma as suas forças e faz com que sejam obrigados a transcendê-la. Neste caso a transcendência está ainda associada à viagem interior e ao retorno de memórias antigas e felizes.
Neste conto, há também uma presença constante da ideia de dor, sendo que a personagem refugia-se bastante na bebida, apesar da infeção e do cheiro. No entanto, o ambiente em redor é descrito como reconfortante, através da descrição das aves por exemplo, ou daquilo que vai vendo e que contrasta com a viagem interior.
Podemos compreender, nas suas palavras, que “(...) não escrevia sobre o que nunca quisera escrever, enquanto não conhecesse suficientemente as coisas para as descrever bem. Não teria também receio de fracassar ao descrevê-las. Talvez nem sequer nunca pudese escrever por falta de oportunidade, e foi por isso que adiara sempre o instante de começar. Agora, nem sequer chegaria a saber."
O encontro com o outro, com que acabou por ser obrigado a confrontar-se perto do Kilimanjaro, faz com que afirme: “Porém, no íntimo, pensara que havia de descrever aquela gente; aqueles que eram muito ricos; aqueles no meio dos quais se sentia um espião, diferente deles; aqueles a quem havia de abandonar para os descrever da única maneira possível, descrevê-los, conhecendo-os por dentro e por fora.” Nota-se uma exotização do outro, ao mesmo tempo que existe um desejo de o tentar compreender e até descrever. Por fim, o Kilimanjaro é a visão feliz que tem no final e que faz com que não seja óbvio o desfecho da história, ao começar e terminar com a mesma imagem. Compreendeu somente, que “(…) era para ali que ia.”
A viagem interior é o recordar das suas outras imensas viagens, muitas das quais nem sequer chegou a escrever. Cada viagem está presente de forma indirecta na viagem principal (África). No entanto, há uma certa autodestruição das memórias felizes, pelo que a mulher chega a questioná-lo: “Para desapareceres achas necessário eliminar tudo o quanto deixaste atrás de ti?"
Por outro lado, são também as memórias que não permitem que se destrua totalmente, alimentando-se delas e procurando encontrar algum conforto numa situação limite. As memórias de guerra, por exemplo, fazem com que sinta que “Tomara parte desses acontecimentos, examinara-os de perto e era seu dever descrevê-los; mas, agora nunca mais seria possível fazê-lo”.
A partir da viagem interior vai reconstruindo o presente, chegando a considerar que Deus não lhe traria nada que não pudesse suportar. A presença do binómio vida/morte é constante, reflectindo sobre ambas enquanto ideias, praticamente durante toda a viagem. Nota-se que não é ainda certo considerar a personagem Harry um viajante, uma vez que é obrigado a permanecer no local por força do destino, o que faz com que tenha que mudar o curso da sua viagem.
E é precisamete nesta viagem que há elementos específicos de ficção, mas também de real, e de autobiográfico até. Além disso, tanto é possível reparar na familiarização do ambiente à sua volta, como da exotização do exterior, de mistério ou quase de revolta por ser obrigado a estar ali. Por fim, pode considerar-se ainda que existe um certo apagar do Eu, pelo conhecimento subjectivo que a personagem apresenta acerca de tudo aquilo que está a acontecer e que o rodeia também. Harry viaja constantemente, dentro e fora do texto, tanto para recordar, como para salvar-se da dor que sente.
Este conto é importante pela ideia frequente que temos das viagens de Hemingway por África, por uma grandiosidade, mas dor e humildade. E pelo quanto chegou a afirmar: “Nunca ter conhecido uma manhã em África em que não acordasse feliz.” No entanto, sabemos também por contos como este, que os tempos nem sempre foram fáceis e que não existiam somente momentos de alegria. É talvez através da própria viagem, interior e exterior, que o autor recupera as memórias mais felizes de outras viagens mais anteriores, das quais se alimenta constantemente, procurando suportar o presente e imaginar o futuro sobre o qual poderá escrever.















