Este Ofício de Poeta reúne seis palestras de Jorge Luis Borges, proferidas no âmbito do curso Norton, em Harvard, durante o outono de 1967, quando o autor argentino já se encontrava praticamente cego. Mais do que comunicações académicas, estas palestras constituem um verdadeiro introito à literatura e ao gosto literário, sendo também uma abordagem excecional ao pensamento de Borges, pois, não obstante a sua vastíssima erudição, o mestre argentino surge-nos despido de qualquer pretensiosismo, num tom coloquial e até humilde de quem valoriza, sobretudo, a dúvida.

Na primeira palestra, O Enigma da Poesia, J. L. Borges clarifica que não pretende – apesar do título escolhido – oferecer certezas sobre o tema em causa, advertindo para o facto de não possuir qualquer revelação a respeito do mesmo. Para o autor nascido em Buenos Aires, a poesia permanece um mistério: “Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só dúvidas posso oferecer-vos”. Distanciando-se daquilo que poderia ser uma perspetiva académica e prescritiva, Borges brinda-nos com um registo despojado e quase familiar que não cessa de nos deslumbrar. Vejamos como desafia qualquer convenção, ao enfatizar que a poesia – ao contrário do que possamos conceber – não se encerra em compêndios de estética, os quais, a seu ver, apresentam uma visão desfasada daquilo que é a literatura. O próprio recorda a “sensação desconfortável de ter estado a ler livros de astrónomos que nunca olharam para as estrelas”, talvez porque tais livros resultem de uma tarefa e não de autêntica “paixão” e “alegria” – sentimentos indispensáveis, do seu ponto de vista, à existência da verdadeira poesia.

Na mesma senda, sugere que a poesia é indissociável da vida, espreitando a cada momento e surpreendendo aqueles que por ela se deixam surpreender. Uma ideia que nos remete para o filme Poesia (2010), do sul-coreano Lee Chang-Dong, ao longo do qual Mija, uma mulher que sofre de Alzheimer e tem por única companhia o neto, decide aprender a escrever poemas. No curso em que se inscreve para tal, é encorajada a prestar atenção a tudo o que a rodeia, observando a localidade onde vive, a interação das pessoas e a própria natureza, de modo a alcançar a revelação poética. Algo que encontramos também em Paterson (2016), o filme de Jim Jarmusch em que um jovem e pacato motorista parte da observação do quotidiano para exercitar os seus dons poéticos; o simples ato de atentar nas conversas dos passageiros que diariamente transporta serve de mote para os seus poemas, corroborando a tese borgesiana de que a poesia reside naquilo que é mundano, pois “a beleza está à nossa volta”.

Em O Enigma da Poesia, Borges reflete também sobre os livros, defendendo que estes “são apenas ocasiões para a poesia” e que, em si mesmos, de pouco servem sem a cooperação do leitor, o qual necessita de ser convocado para a ressurreição das palavras, já que estas não passam de meros símbolos. Assim, é desse leitor ideal que depende a experiência poética:

Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então chega o leitor certo e as palavras – ou melhor, a poesia por trás das palavras, pois as palavras em si são meros símbolos – saltam para a vida e temos uma ressurreição da palavra.

Deste modo, o ato de compor um poema e o ato de ler um poema aproximam-se – uma visão, de resto, partilhada por Louise Glück, como observamos neste excerto de uma entrevista concedida à Paris Review: “There are always two people working on a poem; the writer and the reader”.

Também para Jorge Luis Borges o papel do escritor/poeta e o papel do leitor são equiparáveis; a ambos é exigível que possuam “paixão” e “alegria” e que se afastem da ideia da literatura como conceito filosófico ou “tarefa”, até porque saber o que significa um poema não é o bastante para senti-lo ou experienciar a poesia. O poema tem de provocar no leitor uma sensação que ele não seja totalmente capaz de exprimir por palavras, porquanto a poesia não se extingue como meio de comunicação, sendo antes uma articulação entre inteligência e emoção. Tendo em vista enfatizar este ponto, Borges evoca um momento basilar da sua infância:

Talvez a real emoção que tirei dos versos de Keats esteja nesse momento distante da minha infância, em Buenos Aires, quando pela primeira vez ouvi o meu pai lê-los em voz alta. E quando o facto de a poesia, a linguagem, não ser apenas um meio de comunicação mas poder ser também paixão e alegria – quando isto me foi revelado, não creio ter compreendido as palavras, mas senti que qualquer coisa me acontecia. Acontecia não apenas à minha inteligência mas a todo o meu ser, à minha carne e ao meu sangue.

Segundo o próprio, a primeira leitura do poema é a que corresponde a uma leitura verdadeira, sendo que as restantes constituem uma mera crença de que aquela sensação ou impressão irá repetir-se. Como tal, as sensações ou impressões subsequentes serão sempre distintas, mas nem por isso menos válidas, daí que a poesia seja “uma experiência nova a cada vez”. A cada leitura sucede a experiência e isso, sim, é a poesia, na medida em que a mesma nunca se esgota. E por justamente não se esgotar é que talvez seja hercúlea a tarefa de a definir. No entanto, Borges alerta para o seguinte: “Cometemos um erro muito vulgar, que é pensarmos que ignoramos uma coisa porque não somos capazes de a definir”. Ora, se é verdade que definir a poesia é quase impossível, é igualmente verdade que a vida é feita de poesia e que o prazer que nos provoca oferece-nos a sensação de que tudo sabemos sobre ela:

Conhecemo-la tão bem que não sabemos defini-la por outras palavras, assim como não sabemos definir o sabor do café, a cor vermelha ou amarela ou o significado da ira, do amor, do ódio, do nascer ou do pôr do-sol, ou do nosso amor à pátria. Estas coisas estão tão fundas em nós que só podem exprimir-se mediante esses símbolos vulgares que partilhamos.

Este Ofício de Poeta prova-nos que, para Borges, a dúvida é mais profícua do que a certeza; assim compreendemos que tenha citado o inglês Thomas de Quincey, a propósito de ser quase tão importante descobrir um problema novo como encontrar a solução para um problema velho. É também essa dúvida que as palestras Norton procuram fomentar, constituindo-se como uma visão original e despretensiosa – mas sempre sedutora – sobre o fascinante universo da literatura, ao mesmo tempo que representam uma oportunidade singular para mergulhar no pensamento de um autor que fez da sua obra a casa dos grandes temas universais.