A pesquisadora e antropóloga Michèle Petit, em seu livro Os jovens e a leitura1, traduzido e publicado no Brasil em 2008, diz: o que determina em grande medida a vida dos seres humanos é o peso das palavras ou o peso de sua ausência. A obra é resultado de uma pesquisa sobre leitura e sobre leitores, por meio de entrevistas feitas com jovens da zona rural e da periferia francesa. Foram quatro conferências que, depois de reunidas, deram corpo ao livro. Partindo das importantes questões abordadas nessa obra, apresento neste texto uma reflexão sobre a potência da leitura solitária e transgressora.

Começo me apropriando das palavras de Petit para dizer que a leitura, e aqui me refiro à leitura de textos literários, é marcada por várias formas e por possibilitar ao leitor organizar melhor aquilo que ele vivencia. Nesse sentido, a lembrança das primeiras leituras geralmente remonta à infância ou à juventude, e é nesse lugar que ela – a leitura – costuma desempenhar um papel importante na construção de quem somos. É por meio da leitura que nos damos conta das infinitas possibilidades de ser e sentir, pois os textos nos ensinam muito de outras vidas e de nós mesmos.

Entre tantas questões importantes abordadas por Petit, uma que trago para esta reflexão é a imagem do leitor como alguém transgressor e aparentemente solitário. Quando ler não está nos planos das tarefas diárias de um grupo ou comunidade, essa prática pode ser percebida como um isolamento, um distanciamento, e até mesmo, de acordo com Petit, como um gesto rude. Praticar a leitura, assim, ganha uma dimensão arriscada, principalmente quando entra em conflito com os modos de vida do grupo ou lugar onde se vive.

Durante sua pesquisa com jovens leitores na zona rural, Petit aborda os obstáculos sociais, culturais e psíquicos na formação leitora. Nos relatos escutados, a autora se surpreendeu com casos em que ler era associado a um ato arriscado, pois a leitura era vista como um ócio e divergente daquilo que era considerado útil em pequenas comunidades do campo, como fazer trabalhos manuais, por exemplo. Dessa forma, deixar o grupo para se isolar no quarto, para ler, era visto com maus olhos pelos familiares e amigos, segundo os depoimentos de alguns entrevistados. Ler, assim, nessas situações, costumava ser uma tarefa feita na ponta dos pés, às escondidas, num encontro secreto.

Partindo dessa imagem da leitura como a oportunidade de criar um tempo para si mesmo, de forma clandestina ou discreta1, lembro-me da personagem de Felicidade Clandestina2, conto de Clarice Lispector. Nele, a protagonista, depois de arduamente conseguir o livro que tanto desejava (cuja proprietária – a filha do dono da livraria – não queria lhe emprestar), experiencia a leitura de forma clandestina, sentindo o livro como seu amante, num encontro secreto, em que bastam duas partes: o leitor e o texto, apenas.

Analogamente, a leitura em alguns relatos coletados por Petit, assim como para a personagem do conto de Clarice, pressupõe um espaço conquistado, muitas vezes marcado por resistências. De tal modo, podemos ver essa resistência no comportamento perverso da filha do dono da livraria, no conto, e na desconfiança dos familiares e amigos, na comunidade rural, onde ler não fazia parte da rotina.

Outro ponto em comum entre essas experiências de leitura é que tanto os leitores que aparecem na pesquisa de Petit quanto a personagem de Felicidade Clandestina encontram um lugar possível na leitura solitária e oculta, no qual é permitido afirmar a própria singularidade, expressar o que temos de mais íntimo e desenvolver nossa autonomia. Assim:

Ler é a oportunidade de encontrar um tempo para si mesmo, de forma clandestina ou discreta, tempo de imaginar outras possibilidades e reforçar o espírito crítico.1

Em Os jovens e a leitura, uma preocupação de Petit, como reafirma em uma entrevista concedida à revista Escrevendo o Futuro, é afirmar a importância da leitura coletiva para facilitar a apropriação dos textos. Para a autora, a leitura coletiva gera pertencimento, dá lugar a vozes plurais, a uma escuta mútua, a singularidades. E isso, certamente, direciona a discussão para a importância dos espaços de mediação da leitura. No entanto, a autora também ressalta que a leitura solitária não se opõe à coletiva, pois as duas formas criam espaços de liberdade e de resistência.

Dessa forma, notamos a partir daquilo que lemos na pesquisa de Petit, mas também no contato com a narrativa de Clarice, que há uma dimensão de transgressão na leitura1. Assim, como leitores, seja de forma coletiva ou individual, continuemos a transgredir, lendo [...] nas beiradas, nas margens da vida, nos limites do mundo. Deixemos à leitura, como ao amor, uma parte de sombra1.

Notas

1 Petit, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2008.
2 Lispector, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.