Uma das grandes demagogias da modernidade é a ideia de democracia como justificativa e solução das questões político-sociais. Discursos públicos e análises jornalísticas são marcadas, ritmadas pelo uso da palavra democracia, numa cadência vazia de conteúdo e verdade.

A definição clássica de democracia é “governo em que o povo exerce a soberania”, ou também “o sistema político em que os cidadãos elegem os seus dirigentes por meio de eleições periódicas”, consequentemente, democracia é o governo do povo. Segundo a etimologia, demo é sinônimo de povo (originalmente significava distrito), e krato ou Kracia significa poder ou governo. Sendo assim, para que exista democracia, tem que existir um parlamento que efetivamente represente os eleitores e que esses últimos tenham acesso livre à justiça e aos canais de influência nas esferas do poder, com igualdade e facilidade, e onde não existam manipulações e orientações para o exercício do suposto direito democrático de votar.

Como isso poderia ser exercido? Por uma série de escolhas computadas e registradas no voto. Votar é expressar a vontade, é estruturar poder, é efetivar a democracia. Estabelecer regras, normas, preencher os pratos da balança: maioria de um lado, minoria do outro. E assim, as coisas andam, as demarcações se estruturam, a vontade do povo, da maioria, seria representada.

Toda vez que há contagem, número, há resultado: maioria, minoria. A sequência natural desse processo cria oportunismos atravessadores: o resultado pode não mais expressar a vontade, mas sim a ação que se exerceria sobre a contagem dos votos ou ainda a interferência na própria vontade dos votantes.

Historicamente, o direito ao voto foi sendo ampliado nos últimos dois séculos, abrangendo todos os adultos independente de posição social, sexo ou cor da pele, mas é notória a insuficiência desse processo que em nada garante que os interesses e vontade dos cidadãos sejam atendidos pelas políticas públicas do Estado.

Cada dia mais as interferências que visam exatamente quebrar o elo de ligação entre vontade do povo e governo aumentam, e se diferenciam em estratégias decorrentes das circunstâncias históricas e sociais: desde compra direta de votos (comum no passado), até as negociações entre grupos de poder e influência (partidos políticos, empresários e Mídia); do marketing eleitoral às guerras híbridas (que manipulam Mídia, fake News, políticos, poder judiciário, lideranças religiosas etc.); e, nos últimos anos, as Redes Sociais controladas por grandes empresas tecnológicas que trabalham pelos interesses do Capital escancaradamente manipulando desejos e visões de mundo.

Desde as reuniões dos clubes de esquina aos condomínios, das assembleias empresariais até as eleições estatais, onde se desenrolam os processos democráticos, voto nada mais expressa que a vontade dos grupos que os controlam. O voto basicamente exprime a manipulação da população – de suas motivações e interesses – geralmente acionada e conseguida pelas alavancas econômicas, religiosas e político-partidárias. Não é o povo que é representado, mas sim os grupos de poder.

A democracia foi destruída ao ser metamorfoseada em figura representativa do que se pretende burlar e esconder. Nesse contexto, o povo não pode ser representado, e essa é a grande verdade que surge cada vez mais forte.

Povo é força, é ação, é totalidade que aparece quando não é polarizada por disfarces despersonalizadores, negado por religiões, por partidos, enfim, quaisquer somatórios que tentem identificar diferenças. O povo se individualiza através de ações: busca de comida, busca de ar, busca de chão para pisar etc. Esse coletivo de humanidade – povo – serve também de disfarce para esconder o humano, da mesma forma que o voto disfarça e nega a democracia.

Em outra oportunidade, escrevi sobre esse aspecto da dinâmica humana nas sociedades contemporâneas, sobre a necessidade de questionamento aos sistemas opressores: “Opressão e submissão existem quando se faz parte do que é estabelecido sem questionar suas implicações, apenas aceitando sobreviver e ampliar suas zonas de conforto ou mesmo diminuir mal-estar. Aceitar sistemas sociais e familiares, para neles se apoiar sem perceber o que se perde de liberdade ao manter o apoio, é esvaziador. Como viver bem em uma sociedade que mantém metade de seus membros nas condições mais precárias de alimentação e higiene? Como manter parceria à base de castigos e frustrações? Como viver em função de atingir recompensas?

Crime, castigo, opressão e submissão são as constantes, desde que falta justiça, eqüidade, liberdade e autonomia. Nos últimos dois séculos, metade da população mundial foi validada, passou a significar por meio de leis e direitos, mas nem sempre leis e admissão de direitos permitem legitimação. A pirâmide continua, a opressão continua, a base continua a suportar o topo.

Peguemos um exemplo que ilustra todo o modelo: as mulheres começaram a votar, começaram a ganhar dinheiro pelo trabalho. Por que essa mudança? Essa mudança decorreu da necessidade econômica, da falta de fulcro para aplicação da mais-valia (mais uma vez um exemplo de voto que atende a interesses econômicos abrangentes e não simplesmente como expressão de vontade do povo). Legitimidade só vai existir quando os modelos forem transformados ou extintos, daí a constante necessidade de questionamentos, que não pode ser aplacada pela satisfação das reivindicações.”

A possibilidade de mudança surge quando o homem se liberta de suas contingências, de sua sobrevivência, e esse processo está sendo esboçado. Às vezes organizar é destruir e as contradições inerentes às atuais democracias estão se impondo e gerando novas visões. A questão climática é uma delas, as convulsões da Terra (natureza) são muito significativas para o entendimento dos conflitos criados pela organização, produção e construção exercidos até agora. É fundamental questionar o que foi desenvolvido.