Estrada Branca, o livro que publiquei em Abril de 2022, é um livro do tempo, das saudades, das paisagens, das viagens e do caminho da amizade e da memoria.

(…) A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: Ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água. Para perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente, (…) escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro.

(…) A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça, «num lugar tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio, onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão.

(…) Dêem-lhe sim, silêncio e tempo, manhãs e noites com «jardins invadidos de luar» e dançará.

(Miguel Sousa Tavares)

Não existe início nem fim, nítido ou claro. Entre estradas e ciclos ao mesmo tempo, paragens em que choramos de alegria, fomos passando por milhares de paisagens e terminando alguns dos anos cobertos de lágrimas. Nesses instantes, sentimos como há muito não acontecia e reconhecemos, agradecemos.

Encontrámos no silêncio outro tempo e outra força, descobrimos uma nova vontade: a de recomeçar sempre, de traçar planos e de não ficar parados. Os anos pertencem-nos assim mesmo, entre a vida que fomos construindo e que é nossa até o último dos cansaços.

Fizemos também algumas paragens, cimentámos inúmeras páginas, em que ficámos mais fortes e recomeçámos mais acordados. Em noites e em dias, percorremos uma longa estrada. Nela sentimos e não sentimos, soubemos até ficar parados. Em inúmeros voos e comboios, não víamos a estação da caminhada.

Quando sentimos novamente o chão, soubemos também que há memórias que vivem e não vivem aqui. Soubemos trazê-las connosco e contá-las, dar-lhes um novo sentido e encontrar nelas a força de um novo dia, de um novo recomeço.

A estrada continua branca, só aqui e ali vai sendo pintada. Caminhamos agora mais lentamente, recordamos cada lugar com tempo, talvez com saudades. Agradecemos o silêncio, termos vencido e sabido estar. Agora sabemos o quão valeu a pena, mesmo até à última página. Pegamos nela devagarinho, folheamo-la e relemo-la, parecendo nova, mais cansada.

Tudo é novo: o cheiro a jazz ao fundo, as memórias dispersas, mas fortes, talvez bonitas demais. A dor também é nova, por mais que tenhamos descoberto que gostamos de trazê-la connosco, quando encontrámos nela beleza e profundidade. Não por termos vencido, mas por trazermos em nós todas as feridas.

As frases esgotaram-se, não as conseguimos sequer compreender nem existem mais palavras. Poderíamos encher cadernos e cadernos de citações, poderíamos ter pedido às flores que tivessem esperado mais um bocado.

Nunca quisemos olhar um jardim tão triste, em que não reconhecíamos os nomes, os ensinamentos, os longos e tão demorados passos. Foram tantas e tão simples as histórias, que as memórias ficaram dispersas no tempo e no espaço. Ainda nem sabemos se fizemos as pazes, mas sabemos que demos as mãos, e que fomos juntos pelo jardim.

Lembramo-nos do quanto caminhava a olhar para baixo e nós, tão pequeninos, não conseguíamos estar calados. Trazíamos tantas perguntas, não percebíamos de onde vinham tantas redes, tantos peixes, tantas gaivotas. Ainda recordamos aquele cheiro e a brisa, o som das ondas que tombavam ininterruptamente.

E as perguntas, tantas, tantas, apressadas. Recordamos o olhar, outra imagem com movimento, com a paciência da resposta e da explicação sempre tão fundamentada. Foram tantas as conversas depois dessa, tão simples e descomplicadas. O mundo que trazia fora desenhado de uma forma imensamente discreta, serena e sem uma sequer falta de humildade.

Deu-nos a mão, ensinou-nos a pegar no pincel, a cortar troncos de madeira e qual o nome de cada uma das plantas, o cheiro das flores. Agora tudo parece demasiado. Sabemos que trazia de facto o mundo, dos cheiros, das cores, das imagens. E tantas histórias que ao início nem concordámos, talvez por parecerem demasiado ousadas.

Só mais tarde entendemos o quanto tinham de verdade: os barcos, as festas, as memórias das viagens. Delas trazíamos sempre inúmeros tecidos, com padrões e muitas cores, ou mesmo esculturas pequenas, que pendurávamos na parede da cozinha ou da sala. E ainda memórias que tentamos agora reconstruir, com tempo e outra calma.

A planta da nossa sala continua a crescer calmamente, sem que saibamos o nome, está agora mais amarelada. E na varanda as trepadeiras, os catos, o limoeiro, tantas folhas douradas. Foram tantos os jantares que recordamos agora, na chuva que cai lentamente, na subida das escadas, nos pratos e nas entradas. Nunca bons o suficiente, por ser preciso criticar tudo, e mais tarde também, a cultura e a arte.

Foram também tantos os silêncios e as músicas, o jazz, as mãos vivas e cansadas. Os desenhos nos cadernos de capa preta A6, figuras de caneta preta esferográfica. E nós que tentávamos escrever frases de memória, de livros e papéis desarrumados.

Desenhávamos e escrevíamos nessa mesma praia, sentados em silêncio e a ouvir o mar ao longe. Guardámos mais tarde os cadernos e até o esboço de uma ou outra carta. E ainda os livros, de beleza ou tristeza, pequenas homenagens.

Escrevemos e lemos mais algumas palavras, agora mais difíceis e que exigem uma nova responsabilidade. Talvez no fundo por desejarmos ser ainda pequeninos, darmos as mãos, e irmos juntos pelo jardim.

Agora ficámos sozinhos com as palavras, que não são suficientes para expressar memórias tão densas, dispersas e desarrumadas. Vamos tentando, devagarinho, agora com uma nova forma de estar e de olhar tudo.

Talvez seja mesmo uma hipersensibilidade, que sabemos que também tinha, para o mundo, para o tempo e para as inúmeras pinturas e imagens. Não ficou nada por dizer, porque até nos silêncios conversávamos. Procurávamos sempre os instantes de paz e de eternidade que, olhando para trás, parecem tão possíveis, escolhidos, criados.

Aprendemos juntos, com os livros e com as referências que nos fizeram crescer, encontrar um amor que nos faz sempre querer ir e voltar. E que implica ainda mais tempo, deixar pousar e contar mais histórias, eternizado cada um desses instantes à nossa maneira.

Temos de continuar a regar o jardim, a ouvir jazz, a cozinhar e a ler o Expresso ao sábado, mantendo cada uma das coisas vivas ou às vezes paradas. Continuamos a aprender com esse sentido de estar e de liberdade, de estar no meio da festa e precisar de escrever ou de pintar.

A solidão tornou-se bonita e não a esquecemos jamais. As feridas que trazemos connosco têm todas as cores e caminham numa estrada branca com um bonito jardim de ambos os lados. No fim está o mar, o tempo, o silêncio.

Que longa caminhada, que imensidão de luz, de cheiros, de imagens. Que imensidão de tempos, de instantes, de saudades. Que imensidão de memórias que não passam e que dão cor a cada uma das luzes da estrada.