Antigas bordadeiras sabiam bem manusear suas meadas de linha e retiravam o fio que desejam com precisão milimétrica. Muitas vezes estas meadas eram mescladas. Apenas aquele fio daquela cor específica daria o efeito e o tom desejado ao seu trabalho. Seus bordados, de tão minuciosos, expressivos e delicados, como verdadeiras obras de arte, contavam histórias, reproduziam cenas da natureza, imortalizavam fatos históricos, ‘falavam’ de seus sentimentos e emoções.

Isto me faz traçar um paralelo com o intrincado trançado da rede com que a vida e a morte se manifestam em nossas vidas, como se fossem fragmentos de um mesmo fio entrelaçados. Tal como as meadas das bordadeiras, vida e morte estão de tal forma entremeadas e justapostas, que se faz necessário o trabalho do artesão mais paciente e meticuloso para desvencilhar os fios e assim encontrar aquele que produza o efeito desejado. O Criador no jogo com suas meadas de cores diversas vai manipulando assim nossas vidas, de forma que experimentemos aquilo que precisamos vivenciar para nosso crescimento e evolução.

Assim, veja. Quantas vezes você se surpreendeu com a morte súbita ou a perda de um ser vivo próximo a você? Não estou falando no sentido simbólico, mas literal. Estou falando, por exemplo, do seu gato mais querido, que, aproveitando-se de um vacilo seu, sorrateiramente resolve comer aquele passarinho que caiu da árvore e que você estava alimentando reservadamente com tanto esmero e amor. Estou falando da notícia de uma doença incurável e do lento declinar de uma existência até que Deus resolva por um término na “infelicidade que não termina”. Estou falando dos milhões de porcos e aves entre outros animais que são abatidos para comemorar o nascimento (portanto, a vida) do menino Deus. Até mesmo no seu jardim, no seu pomar é necessário matar formigas e ervas daninhas para que as plantas possam vicejar.

Vida e morte andam, pois, pari passu como duas manifestações de um mesmo fenômeno, alternando suas facetas dependendo da conveniência que o momento impõe.

Muitas teorias e religiões dizem que não devemos nos impactar com a morte, visto que ela sempre é seguida pelo renascimento. Verdadeiro ou não, há, no entanto, um fato indiscutível que nos é imposto: a inexorabilidade do ponto final (aquele passarinho que em sua extrema fragilidade e encanto balançava suas asinhas ao ser alimentado por um humano nunca mais o fará). Por sua vez, o gato amoroso apenas agiu conforme a expressão de sua natureza (nada mais natural do que um gato comer passarinho) e continua buscando aconchegar-se ao dono, cujo coração ainda sangra pelo súbito fim do mais pequenino ser que a natureza criou. Não sabemos como se processa o renascimento, nem tampouco somos capazes de fazer a conexão de “a” com “b” (ou seja, se este que agora está à nossa frente carrega a alma daquele que se foi, sob nova roupagem); tudo que sabemos e sentimos é que esta é uma experiência nova e que aquele que a morte levou nunca mais voltará. Ou seja, há uma perda real e um doloroso luto a ser feito.

De qualquer forma, mais do que para aprofundar nossa compreensão sobre o fenômeno, que seja para acalmar nosso coração, vale a pena adentrar-se nas sábias palavras de Clarissa Pinkola Estés, autora junguiana que se debruçou profundamente sobre a questão, não só através do conhecimento oriundo da literatura, mas pelo contato direto com outras culturas.

Segundo Estés (1994) a natureza da vida-morte-vida é um ciclo de animação, desenvolvimento, declínio e morte que sempre se faz seguir de uma reanimação. Esse ciclo afeta toda vida física e todas as facetas da vida psicológica. Tudo - o sol, as estrelas e a lua, assim como as questões dos seres humanos e as das menores criaturas, como células e átomos - possui essa característica de agitação, hesitação e novamente agitação (p. 166).

A autora ressalta ainda que, em vez de considerar os arquétipos da morte e da vida como opostos, devemos encará-los juntos como o lado esquerdo e o direito de um único pensamento. Traçando um paralelo, enquanto um lado do coração se esvazia, o outro se enche. Quando uma respiração termina, outra se inicia. Vale salientar que o arquétipo da força da vida-morte-vida é extremamente mal compreendido em muitas culturas modernas. Algumas não entendem que a morte é carinhosa e que a vida se renovará com seu auxílio. Nas culturas do leste da Índia e Maia, que têm maior cuidado com o ensino sobre a roda da vida e da morte, a Morte abraça os que já estão morrendo, abrandando sua dor e proporcionando alívio. Diz-se ainda que ela vira o bebê no útero para a posição de cabeça para baixo para que ele possa nascer (p. 172-3). Em termos arquetípicos, a natureza da vida-morte-vida é um componente básico da nossa natureza instintiva. Ela é composta pelas partes de nós mesmos que sabem quando algo pode e deve nascer e quando ele deve morrer. Grande parte do nosso conhecimento da natureza da vida-morte-vida, entretanto, é contaminada pelo nosso medo da morte. Portanto, nossa capacidade para acompanhar os ciclos da natureza da vida-morte-vida é muito frágil, ressalta Estés.

Provavelmente seja esta uma experiência necessária que nos é imposta para nosso aprendizado e crescimento: elaborar perdas, já que este talvez seja o episódio mais comum em nossa passagem sobre a terra. Estar sempre se relacionando com a transitoriedade das coisas para que a vida possa se renovar. Isto aponta para o fato unânime entre as religiões de que nossa casa não é aqui. Há sempre algo que nos encaminha e nos direciona para lá, visto que nossa experiência aqui é sempre inacabada, imperfeita, muitas vezes frustrante.

Como no processo em que a ostra acaba gerando sem querer a pérola, é como se tivéssemos um grão de areia alojado em nossas entranhas. Independente de quanta dor isto nos cause, para que a nossa joia mais valiosa seja então produzida e que possa vir à luz do mundo, é fundamental que se dê sempre o melhor de si, a fim de que esta nossa passagem pelo planeta não seja inócua. Todos os anos renovamos nossa esperança de dias melhores e nossa fé na vida com o nascimento do Cristo e assim deve ser. Mas isto só não basta. É preciso o verdadeiro ato criativo, aquele que nos coloca em uma condição diferenciada e faz jus à nossa condição de humanos.

O que quer que seja que nos aconteça, independente de como o Criador manipule suas meadas, este é o compromisso maior que justifica nossa passagem pelo planeta: oferecer um produto de qualidade ao mundo. Podemos continuar ‘bordando’ nossa existência, pois isto nos ajuda a elaborar melhor os acontecimentos sobre os quais não temos controle. As palavras abaixo são de muita propriedade e funcionam como um clarão para prosseguir com nossa ‘viagem’ com espírito altivo e empreendedor:

A vida é um recomeço constante. É necessário abrir mão de algumas coisas, assim como é preciso acolher outras. E muitos acontecimentos surgem de maneira aleatória, frustrando nossa ilusão de controle sobre a vida. Mas cá entre nós, não estar totalmente no ‘comando’, torna esse breve passeio chamado viver mais surpreendente e intenso.

(Meio Psicologo; Ivar F. Jr.)

Referências: ESTES, Clarissa Pinkola. - Mulheres que Correm com os Lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994. p. 627