O título acima, além de parafrasear a frase bíblica muito conhecida, extraída do sermão da montanha: “Olhai os lírios do campo!” (que também é título do romance de Érico Veríssimo), está sendo apresentado neste artigo para nos trazer uma reflexão sobre a vida e uma outra forma de olhar para seus eventos.

É fato que a vida no campo nos brinda cotidianamente com cenas encantadoras, que enchem nossos olhos e nossa alma de luz! Uma delas é a de bandos de garças, que graciosamente se encontram e voam em formação no final das tardes como se fossem perfeitas partes sincronizadas de um todo em movimento.

Habitantes de pântanos ou charcos, donas de uma plumagem do branco mais alvo que se possa imaginar (suas penas possuem uma textura que impede que a sujeira fique impregnada), frequentemente as garças são vistas à margem de represas ou lodaçais, alimentando-se de insetos aquáticos, caranguejos, moluscos, anfíbios, répteis e peixes. Elas fazem seus ninhos em árvores como eucaliptos de grande porte, pinheiros, sobreiros, etc.

Particularmente, a espécie garça-vaqueira costuma acompanhar o gado, beneficiando-se dos carrapatos que se desprendem do corpo do animal, numa saudável simbiose. Essa ave também se alimenta das cigarrinhas das pastagens, insetos que se não combatidos reduzem drasticamente as gramíneas, comprometendo a alimentação do gado.

O grande espetáculo, no entanto, para quem olha para o céu no final das tardes é se deslumbrar com a revoada de garças, que agitam suas asas em uníssono, com um indivíduo na liderança, dirigindo-se ao sol poente. Estes poucos segundos parecem fazer parar o tempo, como se se abrisse uma janela para uma outra dimensão de espaço e tempo, bem acima de nossa cabeça.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (1996), o céu é uma manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade, aquilo que nenhum vivente da terra é capaz de alcançar. O simples fato de ser elevado, de encontrar-se em cima, equivale a ser poderoso (no sentido religioso da palavra) e a ser, como tal, saturado de sacralidade.

Quanto às garças, não sei se a luminosidade intensa refletida pelo branco, a sincronicidade e a leveza dos movimentos - elas parecem planar no ar - ou o trabalho de grupo em perfeita harmonia, ou ainda a somatória de tudo isso, faz mudar o ritmo respiratório e as batidas do coração de quem observa a cena, sugerindo que há um outro mundo correndo em paralelo, bem acima de nossas cabeças, o qual não enxergamos e não nos conectamos com ele, pois estamos sempre a olhar para a frente.

Normalmente, o mundo em que vivemos é aquele da correria louca, onde partimos alucinados em busca do sucesso, o qual é medido pelo dinheiro que temos em nossa conta bancária, pela ostentação do carro do ano, por nossa projeção nas redes sociais (medida pelo número de likes e seguidores que conseguimos arregimentar). Também estamos muito preocupados com a aparência (o conceito de ‘selfie’ é relativamente recente), sendo que nunca fomos tão narcisistas e obcecados com o padrão de beleza em voga.

Neste contexto, a inveja acaba sendo um sentimento muito estimulado, visto que não estamos contentes com o que somos, como somos ou o que temos. O outro sempre alcança maior destaque e brilho aos nossos olhos. Queremos o que ele tem; gostaríamos de estar no seu lugar. Deixamos de olhar para nossas riquezas, nossa individualidade única, e portanto, nossa marca registrada no mundo, no mais amplo sentido do termo. Supervalorizamos o que está fora de nós, enaltecemos e endossamos os valores impostos pela sociedade de consumo e esquecemos de nós mesmos. Isto acontece porque nos amamos pouco, não damos o valor devido aos nossos atributos. Estamos sempre a querer o que o outro tem, invejando sua condição aparentemente privilegiada de vida. Não mergulhamos dentro de nossas profundezas para explorar nossas riquezas. Aliás, morremos de medo de fazer isso. Achamos que vamos nos perder na escuridão. Não percebemos que a visão se acomoda e as coisas se tornam perfeitamente perceptíveis quando mergulhamos no negrume (os bastonetes, células responsáveis pela visão noturna ou em ambientes com pouca luminosidade acorrem em nosso auxílio). No caso, podemos seguramente nos apoiar nos ‘bastonetes da alma’. Estando desconectados de nós mesmos e de nossa verdadeira essência, sofremos terrivelmente com perdas, seja por prejuízo financeiro, a perda da beleza, a perda das formas perfeitas advinda do envelhecimento, a perda de status e poder ou a perda de um lugar de destaque na sociedade, a perda de um ente querido.

Aprender a sentir orgulho de si (no bom sentido do termo) e estar em paz consigo é um dos desafios maiores que um ser humano pode ter. Saber de nossos alcances e limites e mesmo assim nos aceitar como somos pode fazer toda a diferença. Lembremos que a garça voa plena e radiante com todos os seus atributos, sem tentar ficar parecida com nenhuma outra ave. Estando com a alma serena podemos contemplar o balé das garças e interpretá-lo como um sinal de que a vida é muito mais do que as lutas que enfrentamos em nosso dia a dia. Há um objetivo último para o qual elas rumam que devemos transpor para nossas vidas.

Vale salientar que o sofrimento vem da valoração que atribuímos aos fatos e às coisas. Se mudamos a nossa forma de olhar para os mesmos, evidencia-se um sentido oculto que não estávamos conseguindo visualizar e uma nova configuração se apresenta. Lembrando que o branco das garças, como elemento solar, é símbolo da consciência diurna desabrochada, que ‘morde’ a realidade.

Traduzindo em palavras simples, as garças estão a nos dizer que não precisamos arrancar os cabelos por nada de errado ou ruim que aconteça em nossas vidas, visto que embora tais experiências façam parte do nosso processo de lapidação, o objetivo último não é o sucesso terreno tal qual o concebemos, nem tampouco nossa verdadeira morada é aqui.

Portanto, é sempre bom fazer o exercício: ao olhar para as garças do céu, o que você vê?

Bibliografia

Chevalier, J. & Gheerbrant, A., Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1996.