Para Ricoeur, autor de De l’Interprétation. Essai sur Freud (1965), os símbolos do arcaico, do sonho e da infância são os mesmos que representam a nossa imaginação criadora, a nossa aventura espiritual e que representam a projecção das nossas possibilidades. Assim, criação e escatologia reflectem-se na dialéctica reflexiva descrita como l’horizon de mon archéologie e horizon de ma teleologie, conceitos que serão retomados mais tarde.

Segundo o filósofo, é apenas no movimento da interpretação que nós percebemos o ser interpretado. Assim sendo, uma reforma da consciência só poderá realizar-se quando se descobrir na própria natureza do pensamento reflexivo, uma experiência dialéctica fundamental. Esse esforço e desejo de ser, essa reflexão concreta implicará uma arqueologia e uma escatologia da consciência, no sentido de ter os ouvidos no passado e os olhos no futuro, numa metavida que nos faz desejar ir para além de nós, e transformar a nossa condição humana. Então ficará claro que a experiência hermenêutica da verdade é a experiência da autocompreensão humana: simbólica e dialéctica.

Todavia, para Ricoeur, é somente depois de Freud que se entende claramente porque é que a consciência não é origem mas tarefa da hermenêutica e, deste modo, a psicanálise poderá ser uma interpretação geral da cultura e da situação do homem no mundo. Desta maneira, a psicanálise remete-nos para a questão central de toda a filosofia hermenêutica:

Como é que a ordem das significações está incluída na ordem da vida?

Como é que o modo de ser e estar no mundo se encontra exposto diante do texto e como é que nos compreendemos diante do mesmo, sendo o propósito ricoeuriano, o de captar o sentido da obra, que redimensiona a ipseidade e o mundo: “o dizer do hermeneuta é um redizer que reactiva o dizer do texto” (Ricoeur 1986: 162); mas não só, o filósofo especifica em Temps et récit III, que

C’est la tâche de l’hermeneutique, de reconstruire l’ensemble des opérations par lesquelles une oeuvre s’enléve sur le fond opaque du vivre, de l’agir et du souffrir pour être donnée par un auteur à un lecteur qui la reçoit et ainsi change son agir.

(Ricoeur 1983: 86).

Como na psicanálise todo o caminho é, de facto, genealógico e arqueológico, será pois necessário integrar a hermenêutica freudiana do símbolo (com a sua dupla função de esconder e revelar), numa hermenêutica mais vasta, que, confrontando diferentes usos do duplo sentido e as diferentes funções da interpretação, ajude a que a compreensão do símbolo se torne um momento fundamental da compreensão de si. Porém, não nos esqueçamos que o símbolo é já um elemento da própria palavra e como afirma Ricoeur não existe

nulle part de langage symbolique sans herméneutique; là où un homme rêve et délire, un autre homme se léve qui intrepréte.

(Ricoeur 1988: 481).

É por isto que a psicanálise se pode ligar a uma filosofia reflexiva e é este momento fundamental da “reflexão” de si, a todo este processo que Ricoeur vai denominar “arqueologia do sujeito”. Será por detrás de si mesmo que o cogito se descobre e se revela, pelo trabalho da interpretação, pois a existência transparece nesta arqueologia mas permanece implicada no movimento de decifração que suscita.

Senão, vejamos esta história pascal:

Pois é, para além das belas montras das confeitarias e dos ovos pintados por pequeninas mãos de fada, existe neste planeta, num país de sol e maias uma pirâmide, chamada a Pirâmide do Adivinho. É uma pirâmide com lenda, uma história de encantar!

Era uma vez um menino, que nascido de um ovo, estava talhado para morrer, a não ser que cumprisse os 3 desejos do mago, adivinho ou feiticeiro, sendo que um deles teria que ver com arquitectar uma pirâmide num só dia. Assim foi, a pirâmide do adivinho foi construída de uma assentada dando razão à lenda encantada e à magia dos ovos. Desta vez nasceu dele um menino mago!

Quem sabe, se um dia você for ao México, à cidade de Uxmal, uma das jóias da civilização Maia no Yucatan, talvez possa sentir um calafrio serpentino na espinha porque revive a cena do deus menino saído do ovo encantado, de um ovo florido de luz!

Cada vez mais a Páscoa é simbólica, vive-se simbolicamente e come-se simbolicamente.

Para Ricoeur, a existência que a psicanálise descobre é a do desejo que é revelada principalmente numa arqueologia do sujeito.

Pois a Psicanálise, para além de uma prática terapêutica, pretende ser uma interpretação geral da cultura e da situação do homem no mundo (Ricoeur 1965: 1969) e será explorando o vector regressivo do símbolo segundo explicação genética que a psicanálise propõe todo um novo sentido de interpretação, que nos convida a eliminar o sentido aparente, descobrindo o real responsável pelo seu aparecimento. Será este o processo que abre a via possível para uma “arqueologia do sujeito” apontando para uma aventura psicanalítica de reflexão, para uma crítica da consciência do sujeito: “Il faut perdre le moi pour trouver le je” (Ricoeur 1969: 24).

No entanto, Ricoeur chega à conclusão de que só tem de facto uma archê o sujeito que tem um telos, sendo nesta dialéctica que o “eu” vai encontrar o seu ser e estar-no-mundo e perceber a sua estrutura existencial.

Conclui-se então, que ao lado da interpretação freudiana da consciência, onde a existência nos é revelada principalmente numa arqueologia do sujeito, encontramos a interpelação da Fenomenologia do espírito, onde a origem do sentido da consciência já não nos aparece deslocada para trás do sujeito, mas para fora e para a frente deste. Será então o papel do desejo na formação da autoconsciência humana, que permite, segundo Ricoeur, o encontro de Freud e Hegel, pois se o freudismo é uma arqueologia explícita, só o encontro com Hegel permite explicar a sua teleologia implícita, tal como a teleologia explícita de Hegel pressupõe uma arqueologia implícita, que a própria psicanálise descreve e explicita. Em termos literários poderíamos ilustrar este movimento com estes versos de Rimbaud “quand les fruits dépassent les promesses des fleures”; qualquer raiz é promessa de árvore, podendo ficar-se pela planta ou pelo arbusto; o encoberto é promessa da descoberta e esta tem raízes algures, num determinado contexto.

Este é, talvez, o verdadeiro sentido da dialéctica das interpretações em Ricoeur, não se trata de fundir horizontes, o do texto com o do leitor (como acontecia em Gadamer), mas pelo contrário, de fazer com que eles se encontrem pela dimensão do conflito que cada um implica em si mesmo.

Será no espaço de emancipação criativa daquilo que lê que o sujeito se faz autor do seu caminho fazendo com que um objecto epistémico dê lugar a um projecto epistemológico.

A estrutura sintáctica dos nossos enunciados, a complexidade semântica da expressão, o conjunto de crenças e valores que pautam a conduta, a vivência temporal da realidade histórica, numa palavra, o mundo que nos envolve, é transfigurado através do encontro entre nós e a obra que lemos.

Paralelamente, é necessário que se reconheça o símbolo como uma simbiose de regressão e progressão, pois, se por um lado os símbolos evocam a nossa infância, por outro, exploram a nossa vida adulta. Será, portanto, necessário dialectizar o símbolo para compreender o movimento da sua referência. Donde o surgir de uma dialéctica entre as duas hermenêuticas de símbolos. Uma orientada para a descoberta de figuras anteriores – a hermenêutica do inconsciente – ligada como já vimos à psicanálise; outra, voltada para a descoberta de figuras posteriores – hermenêutica da consciência, ligada como já vimos à fenomenologia.

Sendo assim, a dualidade hermenêutica torna manifesta uma dualidade correspondente à dos próprios símbolos. Símbolos que asseguram a unidade de múltiplas interpretações, visto só eles possuirem, segundo Ricoeur, todos os vectores regressivos e prospectivos que ambas hermenêuticas dissociam: “uma voltada para a emergência de símbolos novos, de figuras ascendentes, aspiraladas como na fenomenologia do espírito, outra voltada para a ressurgência dos símbolos arcaicos” (Ricoeur 1969: 117).

Na verdade, para o filósofo, os verdadeiros símbolos estão recheados de ambas as hermenêuticas, daquelas que se dirigem à emergência de novas significações e daquelas que apontam para o ressurgir dos “fantasmas” arcaicos.