Em alguma casa do ano de 2020 há pensamentos e vidas que enfrentam o medo e a esperança. Tudo isso se deve à repercussão do devastador monstro chamado de coronavírus. O mundo parou em detrimento a uma hecatombe entre fronteiras pela referida doença. Na verdade as fronteiras estão na U.T.I pelos aspectos econômicos, sociais e políticos. Com isso a disseminação de fake news aumentou para retratar a era digital e líquida. Todos estão atônitos com essa situação só vista em filmes e livros. O que fazer? Como proceder? Tempos difíceis que nunca imaginamos. No dia em que a terra parou, já cantava o visionário Raul Seixas em 1977 que relatou os momentos atuais em sua canção: “Essa noite eu tive um sonho de sonhador Maluco que sou, eu sonhei com o dia em que a Terra parou com o dia em que a Terra parou foi assim no dia em que todas as pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa. Como que se fosse combinado em todo o planeta. Naquele dia, ninguém saiu, saiu de casa, ninguém...”.

Estamos em quarentena, uma nova ordem surge no mundo. Para tanto que lição tiraremos dessa inevitável circunstância? O escritor Anthony Doerr em seu livro Toda Luz que não podemos ver ressalta:

Sabe a maior lição da história? A história é aquilo que os vitoriosos determinam. Eis a lição. Seja qual for o vencedor, ele é quem decide a história. Agimos em nosso próprio interesse. Claro que sim. Me dê o nome de uma pessoa ou país que não faça isso. O truque é perceber onde estão seus interesses.

(Doerr, 2015, p.89)

Digamos que os interesses econômicos engrenam a história por conta dos interesses dos poderosos. O problema não está no poder, mas na possessividade do poder, ou seja, na estupidez e na ganância de alguns seres humanos. Por que os interesses econômicos estão sempre na frente de tudo, inclusive da vida?

Quando eu era pequena tinha medo de médicos e da polícia. Achava que eram poderosos. Hoje tenho medo dos políticos. Não sabia o sentido de ser um político, nem o que realmente um politico fazia. Como pode um político não compreender a essência do ser humano e da sociedade? Todos os políticos deveriam fazer um curso intensivo de filosofia. Que triste, são poucos os políticos que são gestores e entendem do cotidiano da sociedade. Para Platão a virtude primordial do ser humano é a fraternidade e para o político conquistar a humanidade tem que descer, tem que saber como funciona a sociedade por compaixão. Chego a acreditar que a insensatez e a estupidez humana poderão acabar com o mundo segundo o pesquisador e cientista Stephen Hawkin. Há de se considerar que o ser humano necessita de afetos. E com o isolamento social, sentimos que a sociedade do consumo necessita de plateia para sobreviver. Para o sociólogo Erving Goffman a vida é um teatro.

O indivíduo foi implicitamente dividido em dois papéis fundamentais: foi considerado como ator, um atormentado fabricante de impressões envolvido na tarefa demasiado humana de encenar uma representação; e foi considerado como personagem, como figura, tipicamente uma figura admirável, cujo espírito, força e outras excelentes qualidades a representação tinha por finalidade evocar. Os atributos do ator e os do personagem são de ordens diferentes, e isto de modo inteiramente fundamental; e no entanto ambos os conjuntos têm seu significado em termos do espetáculo que deve prosseguir.

(Goffman, 1983, p. 230,231 grifos no original)1

Digamos que necessitamos de plateia porque a sociedade de consumo tem como mote a vaidade. Lembrei-me da fogueira das vaidades2 o dia em que se queimava todo objeto que resultasse em pecado na Itália. A vaidade é perturbadora.

A vaidade também é um livro de Tom Wolff que traz no romance questões sobre moral e ética numa sociedade de classes. Então, vivemos numa época de muita vaidade. O que dizer da condição humana em tempos de desespero? Como dito no filme, O fabuloso destino de Amélie Poulain, “são tempos difíceis para os sonhadores...”.

O filósofo Matias Aires, em seu livro Reflexões sobre a vaidade dos homens reuniu na condição humana o impulso das paixões entre os bel-prazeres e aflições.

Que coisa é a vida para todos mais do que um enleio de vaidades, e um giro sucessivo entre o gosto, a dor, a alegria, a tristeza, a aversão e o amor? Ainda ninguém nasceu com a propriedade de insensível; a vida não pode subsistir, sem estar subordinada às impressões do gosto e do sentimento.

(Aires, p. 74)3

É cabível de registro que desde pequeno aprendemos com a vaidade alheia a termos vaidade. Nossas vontades são movidas pela vaidade.

O conceito que fazemos de qualquer bem, sempre excede ao mesmo bem, e assim perdemos quando o alcançamos; de sorte que a fortuna parece está tanto em possuí-la, como em desejá-la. As fortunas, ou consistem na abundância, ou no poder, ou no respeito: estas são as mesmas fontes donde nasce a vaidade, e com efeito se há vaidade sem fortuna, não há fortuna sem vaidade.

(Aires, p.49)

Nossos excessos e insensatez perpassam pela vaidade. “Não vivemos contentes, se a nossa vaidade não vive satisfeita” (Aires, p. 42).

São tantas recomendações, tantos medos que já não sabemos mais o que fazer. Talvez o uso do álcool em gel seja, em outro sentido, para passarmos em nossas “almas”.

De repente o batom já não faz mais sentido atrás das máscaras de proteção. São tantos sentimentos, como um mix de pavor, insegurança e de descrença que fora instaurado. Mesmo assim a vaidade consegue se estabelecer e resistir em tempos de desesperos.

Nas almas deve haver a mesma diferença que há nos corpos; umas mais débeis, outras mais robustas; por isso em umas obra mais o sentimento, e acha mais resistência em outras; em umas domina a vaidade com império e furor, em outras só assiste como coisa natural; naquelas a vaidade é uma paixão com ímpeto, nestas é um vício sossegado, em desordem.

(Aires, p. 50)

Por outro anglo, o referido vírus colocou em xeque-mate a saúde pública que se arrasta em detrimento da vaidade de alguns políticos. Por isso, quais são as prioridades que queremos em detrimento do funcionamento do nosso planeta? Porque é tão difícil aceitar que cada cultura tem o seu valor? Quanta distância do céu, né?. Estamos perdendo os rituais, a centelha com o divino para acreditarmos numa ética da estética. Não entendo esses jovens que não se animam com as encenações da natureza.

As fronteiras sempre foram o grande nó nas divergências entre os governantes e empresários. As fronteiras também existem no cotidiano das pessoas, nas famílias e no trabalho. Os estudos proxemicos dependem da visão em paralaxe.

Cerca de trinta polegadas do meu nariz é a borda da minha pessoa, e todo o ar intacto no meio é o meu território herdado privado. Desconhecido, a menos que com olhos íntimos eu faça sinais fraternos. Tome cuidado, não se aproxime: não tenho canhão, mas eu cuspo.

(W. H. Auden)4

Há na atualidade o afogamento das vaidades humanas. O desespero pela falta de compreensão em ter mais do que ser. O filósofo Kierkegaard diz que5 o desespero é a "inconsciência em que os homens estão de seu destino espiritual" (ibidem, p. 29).

Estamos nos afastando do simbólico, procuramos sustentação no supérfluo e então renunciamos em compreender a grandeza de nossa existência na Terra.

O padre e filósofo Theilhard de Cardin pode nos ajudar a entender porque tanto afastamento para o sagrado. Sabe-se que o mal gera o sofrimento e com isso provoca uma desordem na vida, no corpo e na alma.

Para entendermos o Chardin os seres humanos apostam mais no mal do que no bem. Crescemos com frases recheada de competições e do mal. Teilhard expõe a existência que quatro expressões do mal no mundo: mal de desordem e insucessos, mal de decomposição, mal de angústia, mal de crescimento. (Chardin, 1980).

Somos seres em construção devemos nos livrar de todo mal e trazer o sagrado para nossas vidas para curar nossas fronteiras porque “não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, mas somos seres espirituais vivendo uma experiência humana” (Teilhard de Chardin).

O luar quando bate na relva

Não sei que cousas me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?

(Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos, Poema XIX" Heterónimo de Fernando Pessoa)

Notas

1 Vid. Goffman: contribuições para a Sociologia da Saúde (Goffman: contributions to health sociology), Everardo Duarte Nunes, Doutor em Ciências; professor colaborador voluntário da Faculdade de Ciências Médicas/Unicamp.
2 A Fogueira das Vaidades era uma prática, que se verificou em diversas ocasiões e cidades europeias, de queima pública de objetos considerados como causa de pecado, e que geralmente seguiam-se a sermões inflamados de pregadores ou monges contra a vaidade humana e a necessidade de purificar os atos e as práticas dos fiéis católicos. Mais especificamente, a expressão designa os acontecimentos ocorridos no dia 7 de fevereiro de 1497, em Florença, pela sua dimensão e impacto. Nesse dia foi ali reunida e queimada uma grande quantidade de objetos, como livros, obras de arte, produtos de cosmética ou roupas, que se consideravam como meros produtos da vaidade e contrárias à pureza dos ideais evangélicos. Diz-se que o pintor Sandro Botticelli terá queimado algumas das suas próprias obras, mas não há dados seguros que confirmem esta suposição. Os responsáveis pela queima foram adeptos de um pregador chamado Jerónimo de Savonarola. Embora não esteja provado que o próprio tenha estado envolvido nos eventos, o impacto da queima acabou por ter consequências graves para si e para os seus seguidores.
3 Vid. A dor da alma nas reflexões sobre a vaidade de Matias Aires (1952), Paulo José Carvalho da Silva 2009.
4 Vid. aqui.
5 Vid. aqui. O debate entre Paganismo e Cristianismo em duas obras de Kierkegaard: contribuições para uma reflexão sobre os processos de subjetivação, por Cristine Monteiro Mattar.