Kafka, visionário, profeticamente escreveu no seu livro O Processo: “A mentira se transformará na ordem mundial”. Em sua época, mentira era a resultante processual da necessidade de julgar, enganar, convergir comportamentos e mentes à ordem existente. Estávamos no pós primeira guerra e nos pródromos do nazismo. A mentira era, assim, uma necessidade que supria o esvaziamento de critérios humanitários e personalizados com ilusões e generalizações, preconceitos construídos para validar explicações da fome e do desastre ocorridos. A avassaladora corrida antissemita, a exacerbação do caça às bruxas, a invenção de mentiras, de histórias nas quais homens viram vermes que devem ser destruídos, pavimentaram os trilhos para os comboios destinados aos campos de extermínio.

Hoje em dia, com a continuidade das mentiras, foram criados outros universos, outras realidades, outros contextos, nos quais o que vale é o que não existe, é o possível e o provável. Nesse contexto, o fundamental é a venda de sonhos de segurança social, de empregos garantidos, de ajudas individuais que melhorem a performance laboral e garantam a autoestima ao vislumbrar possibilidades de realização de sonhos. É uma vida voltada para conquistas, empenhada em garantias futuras.

Mais que nunca é válida a máxima shakespeareana: “Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos. E a nossa vida é circundada pelo sono”. É a vontade voltada para metas.

Viver em função de resultados, preparar a segurança, tentar evitar doença - acreditando que pela regularidade de check-ups isso é garantido - é uma das mentiras oferecidas pela sociedade do medo e seus mercados cuidadores da saúde ou cuidadores do nosso corpo. Propósitos frustrados, esperanças despedaçadas são constantes na busca da independência social e econômica. Após as graduações universitárias, via de regra, o máximo que o sistema econômico permite é uma ampliação dos compromissos e dos deveres para sustentar os investimentos nos dias melhores. O trabalho dos dias, em nossa sociedade, está cada vez mais comprometido com possibilidades quiméricas e imposições mercadológicas. Essas imposições resultam de grandes mentiras. Cuidar da fome endêmica na África, por exemplo, é uma maneira de conseguir informações, caminhos para utilizar seus mananciais naturais, seus recursos minerais, sua matéria-prima.

Mentir, escamotear, esconder é o que permite vencer, é o diferencial que faz vender gato por lebre, é o que transforma o produto nocivo, letal à saúde, em grande coadjuvante para um corpo bem delineado, aparentemente saudável, embora passe a abrigar órgãos comprometidos. Transformar tudo em produtos vendáveis é a solução encontrada pelo Mercado. A luta por espaço para conseguir vender é constante. Alugar barrigas para gestação, por exemplo, conseguir ultrapassar as condições físicas, estendendo possibilidades infinitas para reprodução, tornou-se comum. Já se pode, aos 60 anos, ser mãe saudável. É a verdade, mas é também a mentira que ajuda, que compromete, subvertendo possibilidades e ampliando necessidades antes não admitidas.

Pontualizar questões em função de focos desejantes, é unilateralizar demandas, é impor novas regras diante de antigos limites que geralmente não dão mais suportes. Ser mãe aos 60 anos é uma façanha, é lançar-se em uma experiência na qual o horizonte é amplo, mas os mapas, as bússolas, os sistemas de orientação estão comprometidos com rotas antigas, não estão atualizados, ou como se diz, as pernas não acompanham a necessidade de andar. Acima de tudo, o que está em jogo, o que se afirma é: “tudo é possível, todos os seus desejos podem se realizar, temos as soluções”… basta pagar o preço e não se cogita sobre significados e consequências.

No séc. XX mexeu-se muito com as propriedades e com os monopólios, foi um século caracterizado pela mudança das colônias para repúblicas independentes, garantidas por outros laços de dominação, não mais o domínio territorial, mas o domínio feito por regras comerciais. Agora, no séc. XXI, nossos corpos são como eram o campo e as terras conquistadas. Somos reféns da ideia de que podemos construí-lo em função do que pensamos ser desejo próprio, sem limites no que diz respeito às transformações. O que é humano não passa de um produto de novos empreendimentos para a indústria farmacêutica, para a indústria de beleza (cosméticos, vestuário, cirurgias): é o fitness.

Outro campo no qual identificamos mentiras é o cultural, o das artes. Tudo pode ser produzido em vídeo e assistido. A participação do homem está dispensada e seus ícones, sua representação são mais virais, atingem milhões de pessoas, lares, países, em um clicar de botão. Representar permite copiar, essa pasteurização do humano o está, pouco a pouco, substituindo por cyborgs, androides e robôs. Trabalha-se mais com a inteligência artificial, do que com a inteligência. Os produzidos e fabricados se tornam símiles do que imitam, pretendem ser os verdadeiros, iguais ao originalmente imitado. Isso já aconteceu com o leite e o queijo pasteurizado e essa new wave bate à porta de nosso coração, de nossos órgãos e os reproduz. A mentira de que tudo é igual, tudo pode ser imitado sem distinção, é a aspiração geral, que consequentemente atinge também as motivações individuais. O que escasseia é a matéria-prima, mas isso também pode ser inventado. Sem limites nesse processo, cada vez mais é oportuno explicitar a validade de Nietzsche:

“Que é então a verdade? Um batalhão de metáforas em movimento, metonímias, antropomorfismos, em última análise, uma soma de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas, poética e retoricamente, e que, depois de um prolongado uso, uma população considera firmes, canônicas e vinculantes; as verdades são ilusões das quais se esqueceu o que são; metáforas que se transformaram, gastas e sem força sensível, moedas que perderam seu valor de troca e que agora já não são consideradas como moedas, mas sim como metal”.

A mentira prevalece na sociedade quando não se oferece segurança para os indivíduos. Não perceber onde pisa, não perceber o outro, não se perceber, enxergar apenas os fios que o sustentam como marionete e que são indicativos de seus caminhos, dizer que tudo é assim e isso é progresso, é a mentira reinante, é a densificação do vislumbrado por Kafka.