O cinema, desde cedo, atraiu para si a atenção das Vanguardas Históricas. E é através delas que ele é alçado à condição de sétima arte. Porém, poucos anos depois, muitos artistas declararam a sua grande deceção com o novo medium – as possibilidades de criação vislumbradas não chegaram a se efectivar e um outro cinema triunfou, um cinema que nada tinha daquele caminho traçado para ele por surrealistas, dadaístas e futuristas, dentre tantos outros.

Quando o cinema aparece, os artistas acreditaram que tinham nas mãos um dos maiores meios de criação, superior a pintura e a literatura, segundo os futuristas. Completamente novo e, portanto, absolutamente plástico e cheio de possibilidades. Poderia se fazer tudo o que os mais ousados escritores sonharam, mas que o papel não permitiu. Era finalmente a hora da imagem fazer vir à superfície a imaginação – torná-la visível e palpável. Aqueles que começaram a trabalhar com o novo meio tentaram inventar maneiras de usá-lo. Não havia regras, não havia limites. Era uma obra que se inventava enquanto se fazia. A riqueza do pré-cinema estava justamente aí: o momento mágico e máximo da invenção e do experimento. E é este cinema que encantou as vanguardas. É este cinema que fez os surrealistas acreditarem que era possível ver o universo onírico exposto e partilhado.

A vitória dos medíocres

Proust chegou a conclusão que só os sonhadores medíocres não revisitam os lugares sonhados por saberem-no sonho. As vanguardas, por sua vez, chegaram à conclusão de que os medíocres venceram a batalha. Não há realmente sonho no cinema. O que encontramos são imagens domesticadas que reflectem uma outra fase da história do cinema – o nascimento de uma linguagem cinematográfica. O momento em que os cineastas, já cansados de experimentar, decidem agarrar o público e cimentar gramáticas, normas, sintaxes e semânticas que vão acompanhar o cinema até a era do digital. E grande parte destas normas deriva da literatura. Não duma literatura de invenção, mas daquela que foi feita para as massas, daquela que, independentemente de sua qualidade, tinha o público em vista no momento mesmo da sua escritura: a narrativa típica do século XIX, que tentava espelhar, ou criar a ilusão de espelho, onde as pessoas podiam identificar-se e desgarrar-se, por um momento, da realidade nem sempre agradável. O novo meio era perfeito - arte dos novos tempos, arte de e para as massas, incultas e analfabetas em sua grande maioria.

Alguns escritores do século XIX criaram verdadeiras máquinas narrativas: estruturas que se repetiam livro a livro, mudando apenas o enredo e as personagens. A história era diferente, mas o modo de contar era sempre o mesmo. Uma das marcas deste modo de contar era uma certa linearidade obtida pelo entrelaçamento meticuloso das tramas. A linearidade das narrativas dá uma falsa sensação de controlo: o homem ciência, que quer competir com o criador, torna-se demiurgo a partir do instante que controla o fluxo de uma história que escorrega inexorável para o fim. Uma metáfora do curso da vida e da morte que espreita. Mas um curso desviado de seu caminho natural e aprisionado em uma fórmula controlada. Sei quando acaba. E sei como acaba.

A sedução da imagem: entre a forma e o conteúdo

O mundo das imagens é o mundo da sedução e do reconhecimento. O escritor e realizador africano, Ousmane Sembene, disse certa vez que, quando a palavra não atingia o seu público, ele usava o cinema para enviar a sua mensagem. O cinema, para ele, não é um meio em si, mas um veículo, como o livro. Não importa o suporte, mas a mensagem. Talvez Sembene não seja o melhor exemplo, pois seu cinema, apesar de ser usado como suporte, não faz parte do grande sistema, daquilo que se convencionou chamar cinema industrial.

Mas, o que nos interessa aqui é ver um escritor, que é também realizador, dizer que o que produz são ideias e não importa o meio em que elas chegarão ao seu público. Desde que possam ser compreendidas. Ao contrário, por exemplo, da obra do cineasta alemão Harun Farocki, que realiza documentários cuja função primordial é levar ao extremo as capacidades do meio cinema para desvelá-las, para provar a sua construção ideológica que, ao partir do modelo de imagem (e de mundo) do Renascimento, busca uma especularidade que não existe de facto. Tudo é mera construção: desde a perspectiva à nova organização do espaço plástico que privilegia apenas um ponto de vista diferindo assim do que se usava convencionalmente no período anterior (múltiplas imagens em simultâneo no mesmo espaço pictórico). Aqui o cinema não é um suporte apenas, mas é a própria mensagem do realizador. É através dele que sua mensagem contra o cinema da opacidade se constrói. Nenhum outro suporte poderia substitui-lo.

Em Stilleben (Natureza Morta, 1997), Farocki reflete sobre o papel da imagem nas sociedades de consumo. Ao apropriar-se de quadros holandeses dos séc. XVII e XVIII, ele tenta mostrar como a publicidade ao utilizar um modelo já plasmado por estas pinturas como a forma correta de se apresentar objetos, provoca o desejo de consumir em um público alvo. Depois de visitar vários estúdios especializados em fotos para publicidade de alimentos, o documentarista desvela o que está oculto por trás da simples arrumação de uma mesa: aqui os objetos são convertidos em objetos de desejo - consumo, logo existo. Este é apenas um exemplo de toda uma obra voltada para a descontrução do discurso estabelecido pela imagem, que nunca é, para Farocki, inocente. E seu trabalho consiste em usar o cinema para expor o mundo das imagens ao avesso, mostrando o quanto a organização «natural» da realidade promovida pelo cinema convencional, pela televisão e publicidade, são mecanismos perversos de ocultar o que não se quer que se veja. E ele busca exatamente tornar visível o que se quer ocultar.

É necessário que se compreenda o papel que os artistas podem ter no processo de apreensão/criação de imagens. Não há imagens inocentes e muito menos há inocência no discurso por elas construído. E na era da imagem digital há já um discurso que subjaz todo e qualquer texto artístico: aquele que promove o fascínio pelo desconhecido. A máquina seduz pelo seu poder de criação, pela sua imensa capacidade de ultrapassar a pré-existencia do real e torná-lo também imagem. Assim sendo a tentação de deixá-la atuar, exibir suas possibilidades e transformarmo-nos em meros utilizadores é muito grande.

O cinema de Farocki vem ao encontro daquilo que defendo: o cinema é muito mais que o suporte, ou canal transmissor. Nele importa tanto quanto o seu conteúdo – a expressão deste conteúdo. Um cineasta como Sembene opta, por questões ideológicas, pelo caminho da compreensão. Aqui nos temos um caso claro de opção. Opta-se pela clareza, porque ela é necessária para a realização do discurso. Mas, nem sempre esta opção está ligada a um projecto social. Busca-se a compreensão porque o que interessa é ter público. A recepção não deve sofrer com ruídos. O problema da compreensão é que a confundimos, às vezes, com facilidade. Compreendemos aquilo a que estamos habituados. E já dizia Sklovsky: “O hábito devora trabalhos, roupas, móveis, a esposa e o medo da guerra...”. E o hábito devorou a nossa capacidade de compreender efectivamente as coisas, o mundo e as coisas do mundo.

O mundo das imagens: a distância entre a intenção e o gesto

Quando a fotografia aparece, a pintura sente-se finalmente liberta para seu grande voo formal. E quando o cinema surge, a literatura sente que a sua hora chegou. Não mais narrar simplesmente. A grande máquina narrativa acabara de nascer. Agora era o instante mesmo da criação, dos desvios, do gozo provocado pelas palavras que ultrapassam o contar, tornando-se, elas mesmas, potenciais poemas. Deixam de ser habituais, e ao ser retiradas desta obrigação do contar, tornam-se plásticas, imagéticas. Os longos parágrafos proustianos, assemelham-se a travellings, criam imagens que vagueiam na nossa cabeça; as palavras de Joyce, recriadas, renovadas, causam um prazer inusitado aos sentidos. Um choque na língua e um choque para a língua, para linguagem, para a arte. Heidegger afirmava que “o homem sabe pensar na medida em que tem a possibilidade de pensar, mas esse possível ainda não garante que sejamos capazes de pensar”. A arte deve, ou deveria fazer pensar.