“Senti que naquele momento eu morri. Mas as batidas do meu coração me diziam que eu continuava viva. Passei a ser então uma ‘morta-viva’ e a buscar todos os dias a paz na morte.”

(Palavras de uma mulher que sofreu estupro)

Invasão do eu.

Corpo devassado... Mutilado... Vilipendiado. Fragmentação... Esfacelamento do eu. Sensação de morte. Sentimento de despersonalização.

Isto é o estupro na vivência de muitas mulheres.

De chofre, o impacto do ato de violência. A truculência, a imposição da força e o domínio do mais forte sobre o mais fraco. Dispor-se ao seu bel prazer do corpo de uma mulher para seviciar e satisfazer seus instintos mais baixos e brutais. Vale tudo. Não só a conjunção carnal não consentida, como estapear, morder, manter a mulher subjugada sob a mira de uma arma... Para a vítima o susto, a dor, a impotência e o medo se confundem e se somam... Momentos de terror e desagregação psíquica se impõem face ao rompimento das fronteiras do ego (físicas e psíquicas).

São múltiplas as esferas e os danos que podem ser causados à mulher que sofre esta modalidade de violência. Para aquelas que sobrevivem ao dia seguinte, além das feridas no corpo e da suposta infecção por doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o vírus HIV, restam as feridas na alma, bem mais difíceis de cicatrizar. O sentimento de absoluta impotência e a falta de controle sobre a situação podem desencadear um quadro patológico extremamente grave caracterizado pelo transtorno de estresse pós-traumático1, isto quando não associado à depressão e à síndrome do pânico, o que pode se estender por anos a fio.

Como se não bastassem todos esses desdobramentos, a ‘cultura do estupro’ na qual estamos inseridos mobiliza na mulher fortes sentimentos de culpa. A cultura do estupro possui uma âncora firmemente fundada no machismo e age inocentando o agressor e culpabilizando a vítima. De tanto ouvir falar, as próprias mulheres acabam introjetando (trazendo para dentro de si e acreditando nesse conceito): “Isto aconteceu porque eu estava vestida assim ou assado ou porque eu gostava de me cuidar / pintar ou foi por conta da minha alegria e espontaneidade.” Para nossa surpresa e perplexidade, ao atender mulheres que viveram esta experiência ouve-se relatos do tipo: “Eu não me sinto digna”, e ocultam o fato como se tratasse de um crime cometido por si próprias, temendo a rejeição e o abandono por parte de seus familiares. Nos casos mais graves, estas mulheres dificilmente conseguem voltar a sorrir ou deixar a luz do sol entrar em seu quarto, literalmente. Trata-se de uma dolorida calosidade que carregam na alma, que as faz buscar a morte pelos mais diversos e sinuosos caminhos... (não se alimentando, buscando o isolamento, expondo-se voluntariamente a situações de risco), isto quando não tentam deliberadamente o suicídio.

Mesmo para aquelas que conseguem se recuperar, esta é uma marca que carregam por toda a sua vida. Nenhuma mulher jamais esquecerá que foi vítima de estupro ou abuso sexual. No caso de ter sido infectada por HIV, esta é uma condição por demais concreta, com a qual é obrigada a conviver diariamente, e que mudou radicalmente e para sempre sua forma de se relacionar com a vida.

Para aquelas que engravidam, fica o dilema sempre cruel de levar adiante ou não a gravidez. Apesar dos avanços da lei e de atualmente no Brasil se poder contar com as prerrogativas do aborto legal, é sempre um constrangimento ter que expor-se, fazer boletim de ocorrência, o exame de corpo delito, enfim, relatar a outrem sua intimidade devassada. Isto é reviver a cena. Quando mexemos em uma ferida aberta, ela sangra ainda mais.

Enfim, examinado de diversos ângulos, o estupro é sempre um trauma de proporções avassaladoras na vida de uma mulher.

Há que se contar ainda com o fato de que a escolha de um parceiro amoroso se torna mil vezes mais dificultada, visto que no psiquismo da mulher a figura masculina se tornou impregnada do estigma do mal e da violência. Assim, como voltar a ter confiança novamente em um homem?

Isto também contamina a noção de que sexo pode ser bom. Fazer sexo passa a ser sentido como um ato de violência.

Serviços voltados ao atendimento destes casos realizam um trabalho de base e de muita responsabilidade. Exige a atenção de uma equipe interdisciplinar detentora de noção criteriosa de cuidado, de proximidade e distância, e, sobretudo, muita sensibilidade. A empreitada de auxiliar uma mulher que foi estuprada a se reerguer e recuperar de novo a confiança na existência, sua dignidade, sua autoestima, dentro do seu tempo e do seu estreito limiar no relacionamento interpessoal, é tarefa muito delicada e sutil.

Sobretudo, essas mulheres, que sofreram uma experiência de inundação ou flooding, resistem a um abraço porque se tornam esquivas a qualquer tipo de toque. Conhecer uma forma de atendimento amorosa, que sabe ser paciente e que seja capaz de compreender que “aquilo foi demais para mim”, mas que “estou do seu lado, caso precise de uma mão amiga para reaprender a andar” é tudo o que mais precisam, mas que ao mesmo tempo mais temem.

Casos como esse tocam diretamente a equipe profissional. Os dois lados precisam restaurar sua fé e sua confiança na humanidade. Indivíduos que são capazes de dispor-se do corpo de outrem ao seu bel prazer exigem um capítulo à parte e constituem uma chaga da humanidade, que até hoje não conseguimos tratar adequadamente.

O ser humano, seja em sua natureza feminina ou masculina, constitui-se em objeto de extrema complexidade, diante do qual nosso conhecimento é ainda muito incipiente. Resta-nos a humildade para aprender, uma escuta afetuosa e um “coração” grande o suficiente (tecnicamente falando, o exercício da consideração positiva incondicional) que seja capaz de compreender a dor de quem é ferido e o contexto da mão que bate.

Nota

1 Segundo a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, sintomas típicos incluem episódios de repetidas revivescências do trauma sob a forma de memórias intrusivas (flashbacks) ou sonhos, ocorrendo contra o fundo persistente de uma sensação de “entorpecimento” e embotamento emocional, afastamento de outras pessoas, falta de responsividade ao ambiente, anedonia e evitação de atividades e situações recordativas do trauma. Comumente há medo e evitação de indicativos que relembrem ao paciente o trauma original. Além disso, há usualmente um estado de hiperexcitação autonômica com hipervigilância, uma reação de choque aumentada e insônia.