«Esta música que acabamos de tocar foi escrita há 25 anos e há 25 anos o mundo era bastante diferente. Da mesma forma, o festival Paredes de Coura celebra hoje a sua 25ª edição ininterrupta, tornando-se o mais antigo festival português em actividade com programações regulares durante todo este tempo. Celebremos então este "lugar"».

A música seria «Barcelona». O álbum em encontro cronológico com esse lugar, o seminal Mutantes S.21. O agitador dessa celebração, Adolfo Luxúria Canibal, corpo e alma dessa instituição artística chamada Mão Morta. Haveria muito que convergir entre essas palavras e o público não se fez rogado. Bastava entrever naquele mar de cabeças, exposto em rodopio pelo transe do concerto, que estávamos diante de um colosso.

O festival, nesse percurso incessante de espetáculos que narram incontornavelmente a história da música rock e pop do terceiro milénio em solo português, tornou-se um colosso. Cortava-se assim oficiosamente, as fitas destas bodas de prata, a um festival que nessa noite de núpcias em 20 de Agosto de 1993, era apenas uma demonstração microscópica e tímida para lá da vontade de existir. Existir e resistir como plataforma de excelência de novas bandas e talentos de garagem que viriam a florescer como Zen, Blind Zero, Lulu Blind, Pinhead Society ou Primitive Reason, corria a década de noventa, com a mudança do escudo para o euro, com diferentes patrocinadores e um estágio progressivo em dimensão e duração.

Mas como prova aquele primeiro cartaz, com a mesma missão destemida em abraçar um festival de música moderna em Portugal. O eclipse é notório, como ilustra por exemplo a exposição fotográfica ao ar livre junto do Centro Cultural de Paredes de Coura exibindo o trabalho de 23 fotojornalistas presentes na história do festival, através destes anos remotos, em que a larva por metamorfoses se foi convertendo na borboleta que assistimos hoje. The Prodigy, Sex Pistols, Morrisey, Pixies, Motorhead, Stone Temple Pilots e os espectros dos falecidos vocalistas destas duas últimas.

Através destas décadas não foram só as bandas, o métier ou a mise-en-scène que alteraram o curso dos acontecimentos, mas também a visão estética e a renovação estilística permanente em busca de géneros em voga como a Britpop, o Nu-metal, o rock’n‘roll mais convencional ou o indie-rock. Foi aqui que dEUS ou Suede provaram o seu fingerprint no final dos anos noventa, que os Korn ou os Incubus marcaram um período mais juvenil e indigente na música que se ouvia, que os Queens of The Stone Age provaram ser a melhor banda do mundo naquele momento, que os the Cramps explicavam a um público embasbacado que rockabilly não é apenas um guarda-roupa ou Lemmy Kilmister que a volumetria daquela encosta poderia sempre ser testada. Foi precisamente aqui que os Arcade Fire ou Coldplay lançaram carreiras vertiginosas. E no interlúdio que separa os artefactos sonoros de 93 até àquele simbólico reencontro dos Mão Morta – a banda fetiche – com o festival, o sucesso deste sonho impõe-se naquele impressionante anfiteatro natural: as quase vinte mil pessoas que se depunham, enfim, aos prazeres de umas miniférias bucólicas e contemporâneas, no olho do furacão que o Vodafone Paredes de Coura desperta na pacata Vila.

Paredes de Coura é o Minho em estado puro, a revelação poética do parnasianismo de João Penha. O espírito da romaria, a inocência rústica dos seus horizontes e a inteligência inquieta e ousada dos seus soberanos. Só assim esta parceria, tão exótica quanto eficaz, de um grupo de gaiatos inspirados pelo histórico Vilar de Mouros - a poucos quilómetros dali - poderia conjugar tão belo cenário com as suas gentes. Que se enchem de orgulho e dedicação, como se pode constatar passeando pelas suas artérias principais, cafés, restaurantes, supermercados e bancas de rua. De repente, aquela pintura naturalista entre prados verdes e aldeias em talude de não mais do que nove mil pessoas, transforma-se na embaixada nacional dos festivais de Verão.

Voltando ao festival propriamente dito... os quatro dias que nos obrigaram a acompanhar mais de 40 projetos entre bandas, djs e ensambles especialmente reunidas para o evento, provaram o ecletismo e a vitalidade que se respirou nas margens do Taboão. Houve uma inegável tentativa em confluir várias nascentes e paisagens musicais, arriscar com novas propostas, bem para lá daqueles tempos mornos do indie britânico e de produtos manufaturados pelos circuitos de festivais ocidentais. Louva-se o facto, transportando entre os dois palcos principais, o público para registos bastante insólitos do padrão habitual. Na quarta-feira e após os supracitados Mão Morta, subiram ao palco principal os ingleses Beak>, três curiosos estetas sonoros com raízes em Bristol, no kraut eletrónico dos Cluster e na reputação de Geoff Barrow e Future Islands, mais mexidos que empolgantes e algo dependentes da entrega vocal do seu vocalista Samuel Herring. O festival teve a sua contestação política – necessária e cada vez mais recorrente neste tipo de eventos - na figura dos Jambinai, banda coreana de crossover rock com folk tradicional e em repetidas picadas anti-Trump que iam suscitando boa repercussão pelo público. O palco Vodafone FM abria o seu pano no segundo dia com os nova-iorquinos Sunflower Bean, seguidos do shoegaze com aquela nostalgia dos noventas dos Nothing, o folk blues sossegado e delicodoce dos Timber Timbre para desabar na demolição caótica de choque frontal com o hardcore dos Ho99o9. Entre concertos razoavelmente prazerosos (King Krule, Foals e Alex Cameron) passando por alguns erros de casting (Nick Murphy e Japandroids) e confirmações de sucesso (Ty Segall e Moon Duo), tomei a liberdade de selecionar os seis melhores atos deste Paredes de Coura 2017:

1. Kate Tempest

Quem nunca se travou com ela teve naquela sexta-feira um excelente cartão de visita. Provavelmente o melhor concerto da edição, a poeta britânica Kate Esther Calvert soltou a alma para quase duas horas de arrebatamento puro entre o seu spoken word, socialmente consciente e um sentido de musicalidade e ritmo irrepreensíveis em pacto com a sua excelente banda. Um espetáculo de mão cheia que prendeu todas as filas daquela colina, desde o primeiro verso até à fogueira de batidas e sons do trio que a acompanhava.

2. At The Drive-In

Era para eles que boa parte daquela turba manteve o finca-pé na quinta-feira à noite e a parceria de Cedric Bixler com Omar Rodríguez-López, acabou por validar a grande banda que são. Grandes grupos, têm grandes canções, convivem mal com pudor em cima de palcos, resistem à ferrugem dos tempos. Os At The Drive-In foram a representação de tudo isso e vergaram céticos e “críticos de reuniões”. Mais do que post hardcore, art punk, emo ou outros salamaleques, os texanos são uma excelente banda de rock... e deram tudo o que tinham.

3. BadBadNotGood

Percebe-se o entusiasmo, a jovialidade e até as danças em cima do estrado. A intensa e permanente interação com o público. Não é qualquer banda que transforma às nove da noite Paredes de Coura num largo sunset flutuante de emoções e vibrações coletivas. Os jovens canadianos lá foram improvisando entre o jazz instrumental, as texturas eletrónicas de Flying Lotus e os ritmos orgânicos pairando o toque de J Dilla. No final, percebeu-se que seria demasiado difícil conter o mesmo patamar para o que vinha a seguir. Como constava naquele cartaz da primeira fila, foram GoodGoodNotBad.

4. Foxygen

Os Foxygen estão longe de serem novatos nestas andanças de festivais, especialmente em Portugal onde já atuaram um par de vezes, mas há que confessar que este talvez tenha sido o mais exuberante e magnífico. Os californianos, Sam France e Jonathan Rado, reluzentes e extravagantes com uma banda bastante sólida demonstraram cobrir um alargado espaço de sonhos rock, pelo cabaret, pela pop, pela psicadelia de San Francisco ou o dixieland de New Orleans. Divertidos, esplendorosos e por demais interessantes, cortaram as fitas a um sábado inesquecível.

5. Benjamin Clementine

A primeira impressão que me veio à cabeça – com as devidas distâncias é claro – era a de uma versão masculina de Nina Simone no palco principal. O londrino que já havia apresentado o próximo disco, numa listening party no centro cultural da cidade, assentou a noite com a sua voz alucinante e atordoou aqueles milhares de ouvidos com o magnetismo com que cativava os transeuntes das ruas e metros de Paris. Com um estilo de piano pouco convencional, uma herança soul bem vincada e uma aproximação clássica à composição e narrativa, Benjamin não é engodo nem quimera. É alma nua de quem nasceu para ser músico.

6. Lightning Bolt

Declaração de interesses: de todas as bandas que percorreram aquele pinhal, estes nativos de Providence eram os meus favoritos. Temo dizer que não me desiludiram de todo. Vendaval sonoro ao limite do suportável, o noise rock dos Lightning Bolt em termos conceptuais assemelha-se aos picantes mais fortes do mundo: quando ingeridos abrem sabores que não sabíamos constar na comida. O acordo tácito entre a bateria de Chippendale e o baixo de Brian Gibson faz colidir uma torrente sonora que no limite, abre espaço para outros sons e frequências. Na guerrilla-style das suas performances, são esses espaços paralelos e recônditos que sublimam o verdadeiro caos dos americanos: (re)descobrir novas ondas e frases sonoras naquele “braseiro” hiperbólico.