Escolhi a “Oração à Luz” de Guerra Junqueiro porque me parece muito pertinente abordar um caminho que tende para um conhecimento simbólico que nos diz respeito a todos, muito especialmente Aqui e Agora que estamos a começar um novo ano; um conhecimento que se identificará porventura com uma revolução de consciência, de atitudes perante os outros e o Mundo. Um conhecimento que mexerá com toda a certeza com um verbo mágico: Renascer.

É de facto de magia espiritual, de transcendência e metamorfose que reza esta oração:

“Claro mistério
Do azul etéreo.
Sonho sidéreo !
Luz! “

Logo a 1ª estrofe nos revela através da antítese uma espécie de profecia celestina colorida de azul eléctrico. Um “Claro mistério” que se vai identificar a seguir com o “fermento da vida”, energia vital para a comunhão dos seres humanos; pois trata-se de “Eucaristia Santa”, da alimentação espiritual dos fieis, hostilina,em círculo perfeito, cheia de “Sophia”.É no meio desta luz, desta bela energia branca que surge o vermelho do fogo, a “Virgem ígnea das sete cores”, a luz primordial (segundo S.João) que se identifica com o verbo:

“Fiat harmónico e jucundi,
Verbo diáfano e profundo,
Alma do sol, corpo do mundo”

Esta é a luz que se opõe às trevas,a luz iniciática que preveligia a esperança e a vida:

“Luz-esp’rança, luz
rútila da aurora”

A luz que se dá no vermelho do sangue e no branco do pão, uma luz escrita no nosso olhar quando agente de amor:

“Sejas bendita em nós, Ó
urna de alegria!”
uma luz que vai para além da vida e da morte:

“Perpetuamente, Ó luz…
bendita sejas”

Assim nos é apresentada a luz do Mundo, força fecunda, original, alimento desejado; chave da vida.

Numa segunda parte, Junqueiro refere o domínio, a omnipotência da luz, as transfigurações que a mesma pode provocar:

“Por ti se volve areia, e um momento

A areia é lodo,é seiva, é fruto lindo,
É carne humana, é sangue, é pensamento”

ou

“És tu que alinhas alegria e pranto:
No sorriso do heroi clarão eterno,
Prisma de Deus na lágrima do Santo”

É uma luz que une os opostos, que neutraliza as oposições, que constroi pontes para distâncias invencíveis, é uma luz quente, de um calor humano suspirado:

“Por ti suspiram, sem te ver, dormentes,
As almas vegetais, indefinidas,
No mistério nocturno das sementes…”

“Germinando por ti, por ti vestidas
Sonham aroma, sonham forma e cor,
Em teu alvor magnético embebidas”

Energia, energia, energia poderosa, preciosa, radiante, geradora de pétalas em forma de xi coração:

“E esplendidas de graça, enlevo e amor,
Ergue-te Ó luz, um ai de luz radiante,
Aberto em beijo, idealizado em flor..”

Interessante é observar que a flor apresenta-se muitas vezes como uma figura arquetipal da alma, um centro espiritual, algo que se desenvolve a partir da terra e da água como um lótus .È o próprio S.João da Cruz que faz da flor uma imagem das virtudes da alma, da perfeição espiritual, de um estado edénico ,e é pela existência desta luz que a vida é :

“Por ti um sopro anímico e fecundo
Penetra o lodo, a rocha, a água, o ar,
voa de esporo a esporo, e mundo a mundo..”

Como um vento doce penetra suavemente onde quiser e como Cupido ,inspira Amor:

“Por ti a asa, o lábio, a mão,o olhar…
Por ti o canto e e o riso e o beijo e a ideia…
Por ti o verbo ser e o verbo amar!…”

Assim surge a teia em que o universo é urdido em fios de luz dos quais os homens-agulhas se servem para fazer desfilar a procissão da História, os tecidos humanos, tendo como pano de fundo o selo do espaço-tempo:

“Homem ,núvem, granito, onda, serpente,
A rocha, o ar, o abutre,
a folha d’hera,
• O mundo, os mundos, tudo o que é vivente”

E ele é evolução e involução com a luz da luz e a luz das trevas ,com o sol e a lua ,com o candelabro das energias coloridas em arco-íris que é a humanidade :

“Do lodo à águia, do metal´` a fera,
Da fera ao anjo, do covil à cruz,
Move-se tudo, existe e reverbera”

Deste modo verificamos a verdadeira cruz que somos nós ,corpos de luz de braços abertos ,vertical cruzada com horizontal, antítese permanente da nossa condição humana. Reconhecemos finalmente o cordão umbilical que nos religa ao cosmos, ao centro original, a spes unica ,bússola da luz.

E eis que depois de “marés de luz”, o poeta invoca o Homem e quase lhe ordena um ritual supremo :

“Faz,d’olhos tristes,
o sinal da cruz:

Uma cruz imortal em pensamento,
Uma infinita cruz, cheia de luz,
Aberta aos mundos num deslumbramento”

Um deslumbramento, um êxtase que passa pelos sentidos:

“Almas da água, quando se casaram,
Foi com beijos de luz que se beijaram”

Que passa sobretudo pelo beijo ,pois a luz é a “mãe do beijo”;-“Não se pode amar sem se tocar”-“o amor é solidez”;”E flor doirada e folha verde e troncos nus / condensam chamas ,arquitectam luz” ; “…de suspiro a suspiro / e beijo a beijo..”; são casamentos doirados, são “esculturas em deslumbramentos”.

É o verbo Renascer actualizado numa Primavera ressuscitada porque agora a luz “É luz prodigiosa, é luz consciente”, um colar de sonhos unidos, fraternos, umbilicando o disperso numa só chama; num sol maior : “…na límpida harmonia /Dum beijo d’ouro ideal”;este o desejo do poeta alquimista místico da luz absorvente e estrelada em nossos olhos; o poeta-homem que se define:

“Sou um hino de luz religiosa”;

Cheio de “sophia”,de uma sabedoria consciente, lúcida, que sabe que a heteronímica é ao vivo, que a evolução está no sangue e no corpo de nós todos, que já fomos muitos outros, muitas outras cama das ,muitos selos no grande envelope da História :

“Lampejam no meu corpo, humanizadas,
Mortas constelações e mortas alvoradas.
Desde que a Vida me gerou em dor
e fui éter, estrela, água, montanha e flor…”

Essa luz que

”transfigura e que converte
o César deslumbrante em poeira inerte

< E o vagabundo, a rastros, num clarão”

Uma luz que desperta e anuncia o iniciado e o criador. Uma luz que banha esse homem em Cristo, como S.Paulo se denomina a si próprio, que é Junqueiro,o sujeito poético de “Oração à luz” e de outro sujeito poético: Camilo Pessanha, em “Branco e Vermelho”; também ele deliciado com a imagem luminosa e transcendente:

“Na inundação da luz
Banhando os céus aflui
No êxtase da luz..”

Segundo Orígenes (nas suas Homilías sobre o Cântico dos Cânticos) para a alma , a coisa mais importante a conhecer de toda a criação é ainda ela mesma, pois a verdadeira visão de Deus é luz sem formas ,qual este passo de Pessanha:

“…Foi um deslumbramento
Que me endoidou a vista
Fez-me perder a vista
Fez-me surgir a vista,
Num doce esvaimento…”

Segundo Santo Agostinho, Deus é a luz, no sentido em que ele é o verdadeiro conhecimento ,já que ele também satisfaz a alma que deseja saber pois existe uma certa luz interior, uma lanterna que só possuem aqueles que compreendem e essa luz interior é o verdadeiro orgão de experiências místicas, visto que ela corresponde à luz divina, ao tal deslumbramento já sublinhado como vimos, por Guerra Junqueiro.

Interessante é igualmente constatar que as últimas estrofes de “Branco e Vermelho” estão como que umbilicalmente ligadas às de “Oração à luz”, vejamos:

B.V. “Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos”

O.L. “Claro mistério
Do azul etéreo!
Sonho sidéreo
Luz”

B.V. “A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso
Foi um deslumbramento”

O.L. “Da terra dorida
Alento e guarida!
Fermento da vida,
Luz”

E finalmente

B.V. “Ó morte ,vem depressa
Acorda ,vem depressa
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa…
Tudo vermelho em flor…”

O.L. “Eucaristia Santa,
Vinho e pão que alevanta
Homem, rochedo e planta…
Luz!
Virgem ígnea das sete cores
Toda abrasada d’esplendor
Mâe dos herois e mãe das flores
Luz “

É claramente em ambos os poemas a promessa, ,o êxtase do sonho que culmina como se o morrer fosse o verdadeiro nascimento. Segundo Santo Agostinho ,Boaventura terá exclamado:

“Como vós sereis felizes se, depois de terdes entrado….nas flores do sangue ,quero dizer, nas chagas de Cristo, vós vos tornareis livres dos clamores deste mundo…”

Os místicos falam também das “delícias da alma”,e neste caso o confessor de Angéle de Foligno (1248-1309) descreve esse estado : “ela torna-se branca e vermelha, radiosa e alegre e os seus olhos são brilhantes que ela não parece mais ser a mesma”.

A experiência da luz significa por excelência o encontro com a realidade última: essa é a razão de descobrir-se a luz interior quando se toma consciência do Si-Mesmo (atman).Nesta circunstância, o véu da ilusão e da ignorância é rasgado. Bruscamente o homem é cegado pela luz branca, ou seja, é mergulhado no ser. Como nestes versos de Pessanha:

“….Foi um deslumbramento … Fez-me perder a vista…”

Ou nestes versos de Junqueiro:

“Luz dardejante!
…..
Cega nocturna e deslumbrante
Porque alumias e não vês “

Ainda é de referir que vários Pais da Igreja denominam o baptismo de “iluminação”(photismos´).Já num passado longínquo, Justino (Dial;88) menciona uma lenda segundo a qual, quando do baptismo de Jesus “acendeu-se fogo no Jordão” .Existe assim um grupo de crenças, símbolos e ritos cristalizados em torno da noção de baptismo de fogo (EDSMAN 1941: 182-185).O espírito santo é representado como uma chama; a santificação é expressa por imagens de fogo ou de fulgor como esta de Pessanha:

“Tudo vermelho em flor”

Ou como esta de Junqueiro:

“Ó luz dos astros…

Olhar de brasas…
…..
em meu sangue exaltada e sublimada”.

É a linguagem dos místicos. O que estes poetas nos comunicam, misteriosos, em verdades inefáveis ,é uma vivência que não tem transcrição possível nas falas humanas. Plotino, Santa Teresa d’Ávila ,servem-se de uma linguagem semelhante. E Fernando Pessoa, no “Além-Deus”.

É a fenomenologia do êxtase : um abandonar deste mundo além da sensação e do pensamento para penetrar noutro,feito de resplendor,,onde as faculdades humanas se refinam em enigmática percepcção como em

B.V. “como um deserto imenso…
….
Que delícia sem fim…”

Ou em

O.L. “E flor doirada e folha verde e troncos nus
Condensam chamas, arquitectam luz”

Talvez tenha sido dada aos poetas a intuição de uma visão do absoluto, de um erotismo sagrado edénico; de uma luminusidade trans-real; talvez o poeta sirva de médium(como referiu um dia Paul Valéry) para nos comunicar o Belo, arquétipos de o mundo ideal Platónico.

Quer “Branco e Vermelho” quer “Oração à Luz” são poesias do símbolo e de mistério onde existem momentos brancos e vermelhos únicos; uma génese cromática em que o branco é sinónimo de pureza, uma espécie de vazio disponível a ser inflamado pelo vermelho encantatório e libertador.

Ambos os poemas se integram na corrente mística da luz ,correspondendo a descrições de paisagens teológicas libertadoras, em que o sujeito poético se assemelha ao viajante que percorre as regiões longínquas do psiquismo, qual Er,no último livro da Républica de Platão. Camilo Pessanha e Guerra Junqueiro encontram-se num parto de alma, dando conta do que se passa nas topologias do além e que se apresenta como transcendente—“deslumbrante”--.Trata-se de uma luz cegante porque a visão do sujeito está já para além do domínio do sensível e do humano; estamos perante o acesso a um outro nível de realidade(meta-realidade para o leitor) e existência que simboliza um gozo antecipado de eternidade:

B.V. ”Doce esvaimento”

E

O.L. “almas em teu alvor
magnético embebidas”

Que referem a transmutação do corpo físico no corpo subtil, o que permitirá a libertação de todo o peso material:

B.V.” Todo o meu ser suspenso”

E

O.L. “Por ti flutua o ar, um mar imenso,
Prenhe de vidas invisíveis onde
Todo o sonho da terra anda suspenso”

Trata-se, de facto, de uma experiência teológico-simbólica que atravessa os paradoxos da condição humana. São circuitos a percorrer em “estados de concentração superior” ,segundo Bergson, para “voltar de novo a ver as estrelas “ como disse um dia Virgílio:

“sed revocare gradum,superas evadere ad aures,Hoc opus,hic labor est”
(“…mas regressar, voltar de novo a ver as estrelas, eis a grande obra”)

Uma luminosidade transreal que promete uma metamorfose, uma lição de vida:

B.V. “É cumprir a promessa..”

Ou

O.L. “Serás a luz do espírito amoroso,
Serás na eterna dor o eterno gozo”

Em última instância ,uma vitória sobre a Morte, como aliás confirma o último verso de “Oração à Luz”:

“A beatitude harmónica e sem fim”

E é tendo fé nesta vitória e cumprindo também o desejo de Guerra Junqueiro, quando nos pede—Oremos—que vos convido a orar a Oração deste rei mago da mística:

Oremus:

Cândida luz da estrela matutina,
Lágrima argêntea na amplidão divina,
Abre meus olhos com teu olhar!

Viva luz das manhãs espendorosas,
Doira-me a fronte ,inunda-me de rosas,
Para cantar!

Luz abrasando, crepitando chama,
Arde em meu sangue, meu vigor inflama,
Para lutar!

Luz das penumbras a tremer nas águas,
Vela as montanhas dum vapor de mágoas.
Para sonhar!

Luz dolorosa, branda luz da lua,
Embala, embebe a minha dor na tua, Para chorar!

Luz das estrelas, vaga luz silente,
Cai dos abismos do mistério ardente,
Sangra calvários infinitamente,
Para eu rezar!

E cantando,
E lutando,
E sonhando,
E chorando,
E rezando,

Farei da cega luz que me alumia
A luz espiritual do grande dia,
A luz de Deus, a luz do Amor, a luz do Bem,
A luz de glória eterna, a luz da luz, amém!