Eu não gosto de escrever textos públicos na primeira pessoa do singular (ainda que aprecie muito a natureza contraditória do que acabei de escrever). A razão para isso não é uma falsa modéstia, uma vez que acredito que as pessoas devem pensar pela própria cabeça, colocando muito de si nas coisas que fazem. O tempo verbal parece-me desadequado por ser demasiado impositivo. Um texto público, como o nome indica, é público. Trata-se de uma dança entre nós e os outros, pelo que a primeira pessoa soa muitas vezes mal e unidireccional. No entanto, abro uma excepção por querer escrever sobre futebol. Ao longo do texto, o leitor perceberá a escolha do tempo verbal.

Desde os anos 80 que vou ao futebol. Ia ao Benfica com um dos meus irmãos, catorze anos mais velho do que eu. Lembro-me de ir com ele, na época 82/83, à final da antiga Taça UEFA, contra o Anderlecht, onde sofremos esse lamentável golo do Lozano. Tinha onze anos e chorei, mas devo ao meu irmão todo o meu benfiquismo. Na temporada seguinte, perdemos 1-4 em casa contra o grande Liverpool do temível Ian Rush. Má exibição do mítico guarda-redes Manuel Bento; não chorei, mas o meu irmão ficou em muito mau estado.

Na vida há coisas estruturais como o bem-estar dos nossos familiares e amigos, realização de projectos em que apostámos, estado físico e mental. O futebol não serve para nada dessas coisas, mas atravessa a nossa vida. Foi com amigos meus que vi o Arsenal 1 – Benfica 3, ainda hoje denominado «jogo do Isaías» (há acontecimentos futebolísticos que ficam rotulados para sempre com o nome de jogadores, como o «campeonato do César Brito»). Lembro-me de ir sozinho ao Benfica - Steaua de Bucareste na época 87/88 e implorar ao porteiro para me deixar ver a meia-final da Taça dos Campeões (ele deixou e esse gesto ficou na minha memória!), lembro me de andar eufórico pela Avenida da República depois do 3-6 em Alvalade (nem preciso de dizer o ano, grande João Vieira Pinto!). Quero esquecer e não consigo o 7-1 em Alvalade. Em 1994, o Benfica empatou 4-4 em Leverkusen. Tinha ido passar um fim-de-semana a São Martinho do Porto com a minha namorada, com quem sou hoje casado. Fiquei tão insuportável, que ela é anti benfiquista desde esse dia. Dado que as mães têm argumentos insuperáveis, as minhas duas filhas são sportinguistas. Eis a catástrofe que um episódio momentâneo pode causar…

É isto que nos faz ser de um clube. Calculo que ser sportinguista não será muito diferente (mas não quero experimentar para saber!). É como se se tratasse de um grande número de molas agarradas ao estendal da nossa vida. Temos afinidades com os benfiquistas, tanto com o mais conceituado intelectual, como com o sem-abrigo da rua de baixo. Todos têm na memória esse resultado 4-4. Todos se lembram do que estavam a fazer nesse preciso momento. No último domingo, ao estar a ver o último jogo da Liga, mais um bloco foi acrescentado ao pilar. Nessa construção somos todos iguais; não há uns mais iguais do que outros. Poucas coisas na vida são tão democráticas nesse sentido.

Tudo isto explica porque não se muda de clube. É tão absurdo como querer mudar o nosso passado. O nosso clube faz parte dele. Além disso, o futebol é um extraordinário jogo. Nós jogamos futebol em criança e nada traz uma maior sensação de liberdade e divertimento. Há inúmeros grupos de amigos que jogam o seu futebol semanal. O futebol semanal não é jogado para praticar desporto, até porque muitas vezes acaba com bifes e líquidos em doses calóricas repugnantes. É aquele golo no último minuto, é a finta, é a grande defesa, é o remate em jeito, é a grande confraternização com os amigos, é o companheirismo, é a saudável pancadaria, é a brejeirice. É isso que faz desse futebol semanal o momento alto da semana. É isso que faz perceber o clássico «jogo com a bola de trapos do rei Eusébio». Poucos momentos da vida de uma pessoa são tão saborosos. Por isso, todos somos treinadores e jogadores. Todos somos sabedores e conhecedores. Todos nós opinamos sobre futebol. Com conhecimento de causa.

Além disso, apesar das suas regras simples, o futebol é incrivelmente estético. Sempre achei o golo do Maradona contra a Inglaterra no mundial de 86 uma obra de arte. Das melhores produzidas por um ser humano. Porquê? Porque a pessoa sente que Maradona, um autêntico génio do futebol, sabia o que queria fazer desde o início da jogada. Foi como que um vislumbre, como que uma obra do destino divinalmente feita para esse importantíssimo jogo. Não podia ser de outra maneira ou feito por outra pessoa. Aquele golo não é um golo de Maradona, aquele golo é Maradona. A simbiose perfeita entre a obra e o seu autor.

Por tudo isto, o futebol é muito mais do que entretenimento. E, por isso, como bem aprendemos com os romanos e o seu circo, o futebol é usado pelos poderosos. Tem a grande vantagem moderna de não haver leões a comer seres humanos mas, ainda assim, há um aproveitamento do facciosismo inerente ao futebol. É claro que somos facciosos e clubistas! Se não o fossemos, estaríamos de certa forma a trair o nosso passado pessoal. O futebol, exactamente por não servir para nada e não ser estrutural nas nossas vidas, puxa a irracionalidade e a emoção. Se passarmos fome, resolvemos o problema comendo um bom peixe. O problema é resolvido tanto com peixe com sal, como com peixe ensosso. Mas nós gostamos de colocar sal no peixe. O peixe é a parte estrutural da metáfora, mas não é por isso que deixamos de achar o sal muito interessante e apelativo. O futebol é uma espécie de sal que defendemos irracionalmente com unhas e dentes. Como não é estrutural, podemos ter o luxo de não sermos racionais. Futebol é prato que se serve irracional. É da sua natureza. Esta é explicação para vermos, de forma totalmente inesperada, respeitáveis juízes aos gritos histéricos num estádio de futebol. Também têm direito ao prazer da irracionalidade.

É nesta parte que vou mudar radicalmente o rumo da prosa. A revista para a qual escrevo este texto contactou-me para falar de ciência, em particular de matemática, para público em geral. Há um episódio futebolístico relativo à época que agora findou especialmente interessante para abordar a natureza da matemática e é disso que tratarei agora.

Esta época teve factores que a diferenciaram de muitas outras. Jorge Jesus, um extraordinário treinador, mudou do Benfica, onde estava há seis épocas com sucesso, para o Sporting. Apesar da sua genialidade futebolística, este treinador tem atributos importantes de frisar. Não me refiro a problemas com concordâncias verbais, uma vez que, como muito bem diz o próprio, não está na profissão para ser Eça de Queiroz. Refiro-me ao desmesurado ego que ostenta. Jesus tem um péssimo perder e um ainda pior ganhar. O vencedor é sempre ele, bem sublinhado com palavras como «eu» e «o cérebro». Além disso, não trata com muita cordialidade os colegas de profissão. Era assim no Benfica, continuou assim no Sporting. A sua técnica continuou impecável, apresentando um Sporting com excelente futebol. Mas o seu «estar» também continuou exactamente igual. Se calhar, se o mudasse, mudava a sua natureza e deixava de ser o treinador que é…

Ao contrário, calhou ao Benfica Rui Vitória, um treinador cordato, bem-falante e humilde. Daqueles que fala de valores e aparenta seguir a sua vida por eles. Uma pessoa racional, capaz de ponderar as respostas e manter altivez. A conjugação destes dois indivíduos à frente dos dois clubes eternos rivais de Lisboa, por si só, revelou-se uma bomba-relógio. Precisamente por, como tentei dizer no início do texto, clubes como o Benfica ou Sporting serem muito mais do que o momento presente, mais do que nunca os benfiquistas desejaram ganhar a Liga. O historial de um clube grande não liga muito bem com o «eu» de Jesus. Ele não pode deixar de ser quem é, mas é um facto que estivemos perante um despique como não se via há muitos e muitos anos. Nós não mudamos de clube. Quando um treinador muda, deixamos de estar com ele, passando a estar contra ele. É nessa altura, já a salvo da cegueira clubística, que o «eu» incomoda e fica a nu.

Pela sua natureza, o futebol já é mil vezes irracional. Dadas estas circunstâncias, ficou um milhão de vezes irracional. É aqui que entra a mensagem que quero passar sobre a matemática. É no caos da irracionalidade que a matemática se mostra em todo o seu esplendor. A matemática tenta apresentar argumentos imunes ao facciosismo, irracionalidade e emoção. A matemática é construtiva e lógica. A demonstração matemática baseia-se em argumentos férreos, capazes de convencer pessoas intelectualmente honestas. A matemática não é escrita na primeira pessoa do singular, devendo ser apresentada de forma totalmente impessoal e para todos. Não quer dizer que quem a faz não tenha o seu estilo próprio e a sua emocionalidade presentes; sem esses elementos não se pode ser bom matemático. Mas, quando os resultados aparecem aos seus pares, devem ter uma apresentação estruturada, uma linguagem própria. Os argumentos matemáticos procuram convencer todos – nesse sentido, é «totalitária». Não é suposto haver a minoria que não acredita no Teorema de Pitágoras. É o contrário, o objectivo da construção matemática é evitar as minorias que desconfiam dos resultados, através de deduções lógicas capazes de convencer os mais cépticos.

Isso fez com que a matemática se tornasse muito bem-sucedida na história humana. Em todos os momentos há emoção e irracionalidade; a ciência e a matemática lidam com os seus efeitos perniciosos, tratando sistematicamente e com método próprio vários problemas. Isso explica a sua enorme importância.

Um episódio muito interessante, relacionado com esta temática, é o alegado fora-de-jogo não marcado no jogo Moreirense-Sporting da época que agora findou. (Imagem da capa).

Pelas regras do futebol, a posição de fora-de-jogo acontece quando, no momento do passe, um jogador está mais perto da linha de baliza adversária do que a bola e o penúltimo adversário. As duas em simultâneo. Sendo assim, quanto a esse episódio, interessa aferir se Slimani (o jogador mais adiantado do Sporting) está ou não mais perto da linha de baliza do que a bola. Em jargão futebolês, pretende-se saber se Slimani está ou não à frente da linha da bola.

Tanto no vídeo como na imagem, parece estar. Noventa e nove por cento do universo benfiquista garante que está. Incrivelmente, apesar da irracionalidade futebolística, uma não desprezável parte do universo sportinguista também concorda em que está. O que é interessante observar é que este problema é um problema matemático. Trata-se de um tema geométrico histórico relacionado com a noção de perspectiva.

De uma forma muito simplificada, a perspectiva diz respeito a representações de objectos em superfícies planas, tal como são vistas pelo olho do observador. As superfícies planas tanto podem ser telas artísticas como, neste caso, a tela da câmara fotográfica.

A perspectiva nem sempre foi muito relevante nas manifestações artísticas humanas. Por exemplo, na Figura 4, vemos uma representação artística egípcia. Aqui, mais do que o rigor da perspectiva, o importante é que os tamanhos ilustrem as importâncias relativas dos intervenientes.

As figuras 3 e 5 mostram um exemplo grego e um trabalho de Duccio (1255-1319). Há um maior cuidado com a profundidade mas, ainda assim, muito empírico.

Por volta da renascença surgiu o tratamento matemático da perspectiva. Em algumas obras, a noção de profundidade, graças a esse tratamento, revelou-se impressionante, por aproximar geometricamente a realidade (Figura 6).

Entre muitos outros, homens como Filippo Brunelleschi (1377-1446), Piero Della Francesca (1415-1492), Albrecht Dürer (1471-1528) deram importantes passos para o desenvolvimento da teoria da perspectiva.

Através da análise geométrica, sabe-se que a intersecção aparente de rectas paralelas, relativamente ao observador, dá-se num ponto de fuga, sobre a linha do horizonte. As Figuras 1 e 2 ilustram a ideia.

Este conceito é matéria de facto, sendo consensual no universo matemático. Imagine-se que a câmara de filmar não está «torta», sendo o seu plano de recepção perpendicular ao plano de terra. Essa hipótese é muito plausível, dado ser uma posição comum das câmaras de filmar nos jogos de futebol. Além disso, assuma-se que a imagem captou o exacto momento do passe. Sob essas hipóteses, a análise matemática é razoavelmente simples de se fazer. É obviamente legítimo colocar a análise em causa mas, concordando com a plausibilidade da posição da câmara e com o momento captado, e essa é a mensagem que se pretende deixar aqui, entra-se em desacordo com os matemáticos e não com o fiscal de linha. Ao passar a discussão para o campo da matemática, ainda que continuando a haver argumentos contra e a favor, a irracionalidade é deixada de lado. Este é o ponto: não se faz matemática com irracionalidade presente. Não há clubismo nem susceptibilidades expressas na primeira pessoa do singular. Essas coisas têm um importante espaço na vida, mas são incompatíveis com a feitura matemática. É claro que é possível que a câmara estivesse torta ou que a fotografia não fosse certeira mas, sob a hipótese de não haver esses problemas, pode fazer-se uma análise puramente geométrica. Utilizando a determinação do ponto-de-fuga, uma análise bastante razoável pode ser vista aqui (Imagem da capa).

Preferindo uma análise experimental com auxílio de algum tipo de software, é possível encontrar-se outra. Mas, muitas vezes, a matemática é bem mais poderosa do que uma experiência, por melhor que ela seja planeada. É por isso que se trata de algo exacto e não experimental. As conclusões são produto de dedução pura. Sendo possível saber a exacta posição da câmara e aferir sobre a bondade do momento captado, a matemática fornece com exactidão a resposta pretendida. Há realmente fortíssima evidência para a tese de que se tratou de um golo legal.

Mas o futebol é, por natureza, irracional. É claro que muita gente não quer saber disto para nada e essa é uma atitude humana comum face a muitos dados científicos. Há que encarar esse facto com naturalidade.

Quero voltar à primeira pessoa do singular! Eu só estou a escrever isto agora que o Benfica ganhou, uma vez que se trata de uma excelente oportunidade para falar de uma temática muito substancial. Se o Benfica tivesse perdido, o mais provável seria estar a curar as feridas em silêncio… Nesse caso, não seria a matemática o principal. Afinal de contas, ou estamos connosco ou estamos com eles. Benfica tricampeão. Ninguém pára o Benfica!