Reinaldo  Luís
Colabora no Meer desde outubro de 2023
Reinaldo Luís

Sou o último livro de ficção de minha mãe, num universo de sete. Nasci do seu cansaço e da sua resistência. A vida arrancou-lhe, precocemente, as folhas, os sonhos, a vida a dois. E, mesmo desfolhada, ela permaneceu de pé, contraventos e silêncios. Aguentou a vida e o tempo; o amor e seus desamores. Fez do sofrimento uma casa onde habitou, sozinha, com as memórias que a perseguiam como sombras persistentes. Construiu, assim, uma história triste, mas profundamente humana, assombrada pelo passado e pelo medo de nunca conseguir, de nunca ser suficiente. E, por fim, dessa mulher que resistiu às ruínas, nasceu um jornalista, um cultor da palavra, um ser feito de perguntas e remendos. Uma ficção em constante invenção, desde 2013, nas páginas dos mais prestigiados órgãos de comunicação de Maputo e além-fronteiras.

Por isso, nesta ficção que sou, quero ser vermelho, preto, ou sei lá. Quero ser uma cor que envolva a dor na penumbra da imaginação. Quero ser um grito de tinta. Quero que o papel sangre. Quero que cada linha descare magos e bruxos sedentos de sangue, os falsos santos e os que fingem virtude. Qual quê?! A vida e a morte surgem como linhas paralelas, distantes, mas eternamente cúmplices, cada uma vigiando a outra até ao ponto em que se tocam e se confundem.

E a paixão? Essa reside entre os homens, calçando e descalçando almas, entrando e saindo como quem invade uma casa sem pedir licença. Miseráveis! Que as palavras os engulam – súbditos do pecado, reféns do desejo! Quero lágrimas e dor em toda a sua extensão. Quero que sintam, na carne ou na alma, o tenebroso destino do além, o que não se explica, o que apenas se sente. Quero imagens de seres sedentos e ensanguentados que povoem as assombrosas tintas da capa, porque é no medo que a humanidade revela o seu rosto mais verdadeiro.

Mas quero também amar. Amar os homens de dor e as mulheres da vida. Amar os que tropeçam e se levantam. Porque entre a misericórdia e a paixão há um lucro que os separa, e é nesse abismo que se mede a condição humana. Quero, antes, arrancar fulgores de mulheres lindas, fortes e frágeis, e rejuvenescer nelas a esperança de viver, neste rochedo de dor e desilusões que é o mundo.

Quero o amor em todas as notas – no “dó” da promessa, no “ré” da espera, no “mi” da ternura e no compassivo “sol” das águas de Maputo. Quero cantar às Acácias, essas testemunhas silenciosas da cidade, sempre floridas mesmo quando o chão se torna árido. Cantarei às suas flores amarelas, que caem como pequenos sóis, e à inocente benevolência dessa montra urbana. Mas cantarei também o ultraje dos homens dos copos e da cevada, esses que buscam na bebida a coragem que lhes falta para amar.

E às mulheres da praça, essas frias almas que nos arrefecem o calor da vida? Essas que vendem o pão, o peixe, a esperança, e que à noite recolhem os sonhos para dentro das capulanas. São elas que sustentam o mundo com o peso das mãos. Restarão nelas, e em mim, sóbrias e leves tintas de amor cortês, e eu as cravarei no fim: às minhas confidentes, às mulheres que me ensinaram que a dignidade também se vende e se compra todos os dias, mas que o amor – o amor verdadeiro – nunca tem preço.

Aos meus filhos, o amor. A grandeza do bem-querer. Quero que sejam homens e mulheres do mundo. Compassivos, misericordiosos, honestos. Que saibam chorar e rir com a mesma intensidade. Quero mentes que brilham e corações humildes, imaculados e puros, ofuscados pela gratidão, mesmo que na mais iludida pretensão da alma. Quero que sejam verdadeiros, defensores de tudo aquilo em que realmente acreditam, mesmo que o mundo lhes diga o contrário.

A beleza da vida reside, intrinsecamente, em assumirmos o nós, sem medo de existir em comunhão. Aceitar e viver o Eu, com as suas imperfeições, e ainda assim não desistir do outro. Quero que sejam felizes por terem e livres por serem. Que a vida lhes ensine a amar, a acreditar, a sonhar e a alcançar. Que nunca confundam humildade com submissão, nem liberdade com solidão.

São estas páginas que a vida me obriga a ler nas agruras do destino e cada linha é um espelho onde revejo o que fui, o que sou e o que talvez ainda serei. Estou destroçado, sim, mas confiante. Porque há uma força que nasce da dor, e uma paz que se encontra depois do caos. Se a vida é o livro que me coube escrever, que seja então um livro de sangue e ternura, de perda e fé.

Sou o último livro de ficção de minha mãe, mas nela e através dela aprendi que toda a dor é também uma forma de amor. E que toda a história, por mais triste que seja, pode encontrar redenção na palavra.

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