O movimento sustenta a vida. Se um corpo orgânico está vivo, nele encontra-se a inquietude do gesto, do respirar, do existir. Para os humanos, do ato mais fundamental — que se constitui no bater do coração — à extenuante tarefa de correr uma maratona, é o deslocamento contínuo que realiza a manutenção da própria existência. Esse processo se complexifica quando, organizando-se culturalmente, o ser humano fixou lugar para habitar e entendeu que o trânsito entre lugares seria favorável para si e para sua comunidade. Para a vida, simbolicamente, importa mesmo atravessar continuamente os espaços, lugares, sensações e todas as esferas materiais e imateriais que compõem a existência.

Em Travessia, o artista Beto Fame, carioca radicado em Londres, apresenta ao público uma reflexão precisa sobre esta latência de vida que ele mesmo experimenta e testemunha em suas interações culturais. Sua trajetória plástica, que teve origem no exercício ampliado da pintura nos espaços públicos, voltou-se nos últimos anos à construção de obras em escala doméstica, sem, contudo, perder a dimensão urbana de suas inspirações. Se as vistas de casas de vila e paisagens antes compunham o léxico visual de suas pinturas, nesta série encontramos um depuramento da forma: amadurecida em estrutura, a imagem passa a relacionar não apenas as memórias afetivas do artista, mas também aquilo que ele projeta como utopia realizável.

O real, que se pode encontrar no meio da travessia — como escreveu Guimarães Rosa — fica elaborado nos modos como o artista constrói as imagens: ora sobrepondo camadas de cor, ora intercalando fragmentos de construções, objetos e elementos naturais — plantas, frutas, achados visuais e sensoriais colhidos no percurso. O princípio da adição de camadas, sobrepondo-as como se realizasse uma colagem pictórica, mimetiza a ideia de um caminho, uma viagem na qual, em cada parte da estrada, fosse recolhido um fragmento de recordação, consolidando assim uma memória imagética do descolamento, ou melhor, da Travessia.

Percebemos ainda que este gesto da colagem se incorporou decisivamente ao fazer pictórico do artista, deslocando sua paleta e abrindo espaço a novos signos. A cor tropical, antes vibrante em alta frequência, cedeu lugar a verdes mais profundos e tons terrosos, como se absorvessem a neblina londrina e o ritmo mais brumoso da nova paisagem. As frutas tropicais que emergem em meio a planos orgânicos tornam-se signos de identificação e pertencimento — ecos de uma origem viva, mesmo à distância.

Assim, esta exposição de Beto Fame se oferece como convite para habitar o movimento: entre o gesto e o descanso, entre o desejo e a lembrança, entre o que se imagina e o que se vê. As pinturas se articulam em acordes cromáticos: camadas que oscilam entre figuração e abstração, entre errância e pausa, entre acaso e projeto. Em cada fragmento reunido pulsa a certeza de que a vida é travessia — deslocamento de tempo, espaço, afetos e paisagens que nos constituem. Assim, Travessia, mais do que destino, é permanência dessa vida latente e constante: caminho que não se encerra, mas que se reinventa, como melodia, a cada novo passo.

(Texto de Shannon Botelho, 2025)