Territórios conhecidos, coisas fantásticas.
Todos os desertos é um convite ao passeio pelas pinturas de Julia Debasse. Artista carioca, que fez também por um tempo, morada no Ceará, Julia convoca o corpo espectador a testemunhar narrativas com sujeitos, objetos e lugares diversos, descortinando camadas de vidas possíveis por descoberta e apreensão. Antes de pintar, Julia escreve e descreve para si mesma, essas imagens-tempos. Pesquisa origens, nomes, modos de vida e as representa no centro das narrativas. Traz referências de mitologias, histórias de ficção e da literatura. Estamos diante de territórios conhecidos como o sertão, o oceano, o deserto, alguns com referências definidas, como o Cariri cearense, a região do Seridó, o Arizona e as paisagens frias. Vemos a lua, o céu, as montanhas e embarcações. Nestes cenários, temos a terra e muitas das coisas que existem nela: espécies reais da fauna, da flora e humanos, em diminutas presenças, com posturas quase que encantadas pela relação com o que os rodeiam. Nós, de fora, olhamos a cena, que é também, ao mesmo tempo, olhada pelas e entre essas personagens.
Na adequação entre sujeitos e coisas, a artista cria um tempo fantástico composto também por certas verdades. Uma baleia Narval flutua no alto, enquanto é observada do espaço da Tundra, por um humano. Em “Força”, uma mulher no centro da tela, em uma paisagem rural, parece sustentar uma pedra que cai, com alguma força maior, enquanto outras espécies testemunham o dado momento. Sereias, decepcionadas, assistem a passagem de um navio de marinheiros (que já passou pela cena ilustrada), que mesmo com seus cantos mágicos, não conseguem os capturar. O importante aqui, não é distinguir ficção e realidade, nem simular um fato ou um conflito, mas ao contrário, é encontrar nessa reunião, a sua função fantástica de criação de um mundo novo.
E se chovesse peixe em um deserto? Nessa imagem, da obra Milagre dos peixes, os humanos parecem tratar com naturalidade o fenômeno, em um lugar que parece impossível habitar. “Eu vejo esses peixes e vou de coração” diz Milton Nascimento na letra da música que deu nome à pintura. “Eu vejo essas matas e vou de coração, à natureza”, ele continua. Ir à natureza, desenhar em pedras com todas as cores, falando coisas reais, parece uma sugestão para o retorno à sensibilidade. No conjunto de obras de Julia, cada imagem provoca nosso corpo a des-abstrair-se, ou seja, convoca a voltarmos a um estado de atenção para as coisas além de humanas, o que está ao nosso redor.
Em Todos os desertos temos um mundo fantástico, cheio de coisas, milhares de espécies em territórios conhecidos. A partir dos elementos evocados nos permitiremos à fantasia. Não é sonho, não é o indício de um fim ou recomeço, é sobretudo desejo de criação.
(Texto de Cecília Bedê. Abril de 2025)