Talvez você já tenha esbarrado na máxima de que os anos 1980 são os novos 2010 e os 1990, os novos 2020. Trata-se da teoria do “pêndulo da nostalgia”, uma ideia nada acadêmica, mas que vem ganhando força nos últimos anos em vídeos de cultura pop na internet. A sensação é de déjà vu. São filmes refilmados, remakes e remasters de jogos, séries que se multiplicam em spin-offs e reboots, melodias antigas ressurgindo em sampleagens incessantes, numa repetição que parece não ter fim. Obviamente, não estamos diante de uma predileção fortuita do mercado de entretenimento, mas do esgotamento das grandes promessas de futuro que, por décadas, nortearam nosso imaginário coletivo.
Podemos começar com um exemplo emblemático desse fenômeno: as estratégias das plataformas de streaming que priorizam narrativas reconhecíveis para mitigar riscos financeiros. Segundo o site Box Office Mojo (2023), entre os 20 filmes de maior bilheteria do ano, 75% eram refilmagens, sequências ou spin-offs de franquias consolidadas — como Velozes & Furiosos 10 e Guardiões da Galáxia Vol. 3. Nas próprias plataformas digitais, embora haja espaço para originais, até mesmo produções como A Queda da Casa de Usher (Netflix, 2023) se apoiam em propriedades intelectuais preexistentes (no caso, a obra de Edgar Allan Poe). Como bem aponta a revista Variety (2023), essa não é uma escolha artística; ao contrário, é somente um cálculo baseado em algoritmos que identificam quais são os ‘elementos seguros’ para reter assinantes.
Submetidos às lógicas de hiperotimização financeira, os estúdios e as produtoras acabam sendo obrigados a ceder ao imperativo de minimizar incertezas, sacrificando qualquer ousadia criativa em favor de narrativas que prometem público cativo. Quando o destino de um projeto cultural está mais condicionado à aprovação de acionistas do que à criatividade de um artista, o risco se converte em pecado, e o novo é heresia.
É nesse contexto de “monocultura imaginativa” que se torna evidente o mito da escassez criativa. Embora vivamos hoje sob um tsunami de produção cultural — com playlists algorítmicas que compilam milhares de faixas e estúdios independentes proliferando em cada canto do globo — a impressão é de que é sempre a mesma coisa. Um estudo recente da Hooktheory apontou que 85% das músicas pop compartilham a mesma progressão de quatro acordes. É como se um roteiro “invisível” ditasse todos os arranjos sonoros. Isso acontece porque não falamos sobre a música sertaneja, que repete à exaustão as mesmas palavras, os mesmos tons, os mesmos ritmos.
Contudo, mesmo diante de toda essa repetição, a criatividade encontra nas margens as sementes de uma regeneração possível. Histórias vindas de territórios periféricos, comunidades indígenas, LGBTQIA+ e não ocidentais podem oferecer narrativas diversificadas, empolgantes e enriquecedoras para nossas vidas. Ao mudarmos nosso olhar, podemos vislumbrar narrativas que rompem com o silêncio do cânone hegemônico, criando novos repertórios estéticos e políticos. Iniciativas como Nollywood, a segunda maior indústria cinematográfica do mundo em produção na Nigéria, e a literatura de Daniela Catrileo, que resgata memórias indígenas contra a assimilação cultural através da mistura das línguas mapudungun e espanhola, ilustram bem esse ponto.
Quem definiu que a cultura dos filmes hollywoodianos ou dos clássicos literários europeus deveria ser a nossa referência universal? Essa suposta 'universalidade' nos faz crer que narrativas de Berlim ou Nova York são mais legítimas que as de uma aldeia indígena no Xingu ou de um sarau na periferia de São Paulo. Nossa cultura não pode ser vista como um pacote importado; ela é a língua que falamos com sotaque próprio, os ritos ancestrais que resistem ao apagamento, as histórias que ecoam nossas dores e delírios cotidianos. Enquanto blockbusters norte-americanos vendem sonhos distantes, um filme africano sobre a diáspora, um romance amazônico ou um cordel nordestino podem narrar realidades que nos habitam há gerações. A verdadeira cultura não é aquela que nos é entregue como produto acabado, mas a que brota do chão que pisamos — e muitas vezes, o que chamam de 'periférico' carrega mais raiz e verdade do que qualquer fábula hegemônica dos Estados Unidos.
O cinema independente, em particular, tem oferecido exemplos contundentes dessa virada de perspectiva. Em A Febre (2019), Maya Da-Rin mistura realismo e mitologia indígena sem recorrer a fórmulas hollywoodianas, abrindo fissuras poéticas que valorizam o tempo dilatado do mundo natural e as crônicas ancestrais que resistem sob a pele da terra. A obra não fecha tramas, mas suspende-as em um limiar de possibilidades, forçando o espectador a inverter a posição de quem observa e transformar-se em coautor da narrativa. Da mesma forma, em Bacurau, a coletividade assume o papel de protagonista — histórias de resistência que não se apoiam em heróis solitários, mas na força da solidariedade de uma comunidade inteira que se ergue contra as forças da obliteração.
As narrativas periféricas também subvertem a cronologia linear que sedimentou a ideia de progresso ocidental. Na literatura africana contemporânea, textos como A Geração da Utopia, de Pepetela, circundam temporalidades cíclicas que insistem: passado, presente e futuro são camadas sobrepostas em um mesmo tecido, não etapas em uma linha reta. Videogames independentes como Outer Wilds reforçam essa concepção, convidando o jogador a revisitar um loop temporal até descobrir segredos que se desdobram apenas quando se quebra o fluxo cronológico convencional. Ao celebrarem a circularidade — simbolizada por estações, rituais ou ciclos naturais —, essas obras apontam para outros modos de sentir a passagem do tempo, deixando de lado o tédio e a ansiedade do “próximo grande filme da Marvel” que o modelo dominante sempre empurra.
Apoiar essa multiplicidade passa por apostar em festivais independentes, editoras alternativas, coletivos artísticos locais e plataformas de financiamento coletivo. São esses espaços de convivência e troca que permitem o florescimento de repertórios inéditos, onde o erro e o improviso são celebrados como condições de possibilidade — o que, por sua vez, retroalimenta o campo mais amplo da cultura com ideias que perturbam o status quo.
Não se trata de abandonar todo vínculo com o mainstream, mas de transformar a repetição em contraponto crítico, reconhecer nela tanto os riscos da estagnação quanto as oportunidades de remixagem criativa. Pois o futuro não está fadado à repetição infindável. A cultura ainda aguarda que aprendamos a escutar seus murmúrios em línguas que mal começamos a decifrar. Talvez seja necessário desligar os modos automáticos de consumo cultural, trocar as baterias do nosso repertório e aventurar-nos em territórios inexplorados. Participar de debates, divulgar descobertas em redes independentes, frequentar mostras alternativas e financiar projetos de risco são atitudes que reverberam para além do ato individual: criam redes de cuidado e invenção.
No fim, cabe dizer que a resposta para os tediosos remakes, rebuilds, remasters, refilmagens, re..., re..., re..., pode estar muito mais próxima de nós do que o botão do app. A resposta pode estar em nós mesmos. Basta sabermos se teremos coragem de abandonar os trilhos já marcados e permitir que outras histórias nos guiem até paisagens onde a ideia de futuro não seja uma cópia rabiscada do que já existe.