Until the philosophy / Which hold one race superior / And another inferior / Is finally and permanently / Discredited and abandoned / Everywhere is war / Me say war.
(War - Bob Marley)
Comecei a perceber as canções do Bob Marley com o Gilberto Gil. Obviamente não de forma literal! Afinal, quem não lembra da sua versão para No, Woman, No Cry de 1979? Numa década tão marcada pela disco music, pelo rock e pela MPB aqui no Brasil, então, somente a partir desta versão criei o interesse pelo reggae. Inicialmente, apenas pela pulsação da música, aquele som vibrante e dançante que encontrava eco nas ruas soteropolitanas e, principalmente, era abraçada pelo movimento negro da cidade. Com o tempo fui entendendo suas letras e significados.
Recentemente, assistindo ao filme Bob Marley: One Love (2024, Reinaldo Marcus Green) percebi que assim como a Jamaica hiper polarizada dos anos 1970, o mundo atual também parece cada vez mais enlouquecidamente polarizado, mais imune ao diálogo, focado apenas nas narrativas de interesses próprios a um indivíduo, a um grupo de indivíduos, a uma nação.
Parece ansiar por um retrocesso aos direitos humanos discutidos e estabelecidos logo após a Segunda Guerra Mundial (repito: pós Segunda Guerra Mundial!) e que vem sendo arduamente trabalhados e disseminados ao redor do mundo, tendo como pilar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada em assembleia geral da ONU em dezembro de 1948.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.
(artigo 1 da Declaração Universal)
A canção War que abre este texto e está presente numa das cenas do filme citado é de 1976! A sua letra é uma adaptação de um discurso do imperador etíope Hailé Selassié feito em 1963 durante sua visita a sede das Nações Unidas. Ou seja, 28 anos após a Declaração Universal da ONU, Bob Marley cantava um discurso feito 15 anos após a mesma declaração! E agora após 76 anos, comemoramos a sua plenitude? Longe disto! Ainda há muito a ser feito, mesmo em países dito democráticos.
O trabalho da sua construção ao longo de tanto tempo seria um problema? Acredito que não! Afinal não se constrói uma civilização em ¾ de século. A questão atual é perceber que existem pessoas, grupos que parecem duvidar da importância dos valores contidos nesta declaração. Parecem não perceber que eles são a única salvaguarda dos cidadãos comuns e, principalmente, dos desprovidos, dos ignorados, dos periféricos, daqueles que não possuem o poder econômico ou político...
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
(artigo 3 da Declaração Universal)
... E aqui um pequeno parêntesis... Normalmente o poder político costuma vir a reboque do poder econômico, mas já é uma outra história... que pode ser mais bem pesquisada em História da Riqueza do Homem de Leo Huberman.
Tem dúvidas da influência do poder econômico? Então reflita sobre quantas vezes você foi impactado por notícias sobre trabalho escravo ou análogo a escravidão nos últimos anos, mesmo meses? Cometidos em regiões longínquas do campo pelo interior do país (carvoarias, fazendas de cana de açúcar etc.) e mesmo escancarada em pequenas e grandes indústrias em regiões metropolitanas do país (indústrias de roupas, de automóveis etc.).
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.
(artigo 4 da declaração)
Uma questão tão século 19 não é? Imagina se não existisse uma atuação mínima sob coordenação dos organismos de Estado para coibir esta prática! Se não existisse a consciência da sociedade civil exercendo o seu poder de fiscalização e denúncia através da imprensa, das ONGs, das associações...
Num mundo de perenes e crescentes conflitos entre nações, de invasões de territórios e de países, de ataques xenofóbicos, bom lembrar:
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.
(artigo 5)
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
(artigo 9)
O que dizer das rotineiras e cansativas construções de falsas narrativas e ataques contínuos a determinadas pessoas ou grupos, feitas muitas vezes atrás da “aparente” blindagem da distância, do remoto? Muitos não possuem a coragem para o debate franco, aberto, civilizado, olho no olho, mas se assoberbam de coragem atrás de uma tela, muitas vezes ocultando-se em pseudônimos.
Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação...
(artigo 12)
Voltando ao filme Bob Marley: One Love, existem dois momentos cruciais...
O primeiro retrata a situação de estresse e ruptura social pela qual a Jamaica atravessava no início dos anos 1970; a ideia do Bob Marley de fazer um show para unificar o país; e o atentado contra a sua vida em função da realização deste show, que por fim culminou com o seu autoexílio em Londres.
O segundo momento é exatamente o seu retorno à Jamaica, já consagrado como grande artista internacional, para realização do mesmo show em pró da unificação do país, desta vez convidado e apoiado pelas ditas forças políticas antagônicas que o repeliram anos atrás. Bingo! Afinal para quê tanta divisão e negativismo?
Why not help one another on the way? / Make it much easier, yeah, yeah (just a little bit easier) / Say you just can't live that negative way / If you know what I mean / Make way for the positive day.
(Positive Vibration, Bob Marley & The Wailers)
Muitos se escondem atrás da simples narrativa de que o reggae é um ritmo de maconheiros e se bloqueiam as suas mensagens. Por incrível que pareça ainda hoje há esta discriminação em relação ao reggae, atrelando-o a questão do uso da maconha por uma parte dos rastafaris.
Te confesso: você pode gostar de reggae e não ser um usuário de maconha da mesma forma que pode gostar de John Lennon sem também o sê-lo. Hum! Abre-se outra porta de reflexão... Seria realmente o uso da maconha por parte de alguns rastafaris que lhe causa repulsa ao reggae? Ou seria o fato de ser um estilo criado, cultivado e disseminado pelos negros? Boa tese para pesquisa, se é que já não existe...
Quanto a polarização atual do mundo, um antídoto: ouçamos Bob Marley! Quando nos sentirmos tentados a mergulhar em uma das extremidades desta polarização; paremos e, como um exercício de busca pela paz tão necessária atualmente, nos abstenhamos de qualquer tipo de preconceito e ouçamos Bob Marley, principalmente nos atentemos as mensagens contidas em suas belas canções.
Redemption song / Won't you help to sing / Another song of freedom? / 'Cause all I ever have (all I ever have) / Redemption song / Emancipate yourselves from mental slavery / None but ourselves can free our minds.
(Redemption Song, Bob Marley & The Wailers)
Se preferirem, também podemos ouvir Jonh Lennon na busca desta mesma paz.
…Imagine there's no countries / It isn't hard to do / Nothing to kill or die for / And no religion, too / Imagine all the people / Livin' life in peace…
(Imagine, John Lennon)